‘Filhos do ódio’ || Uma retratação magnética, porém simplista, de Bob Zellner no ativismo antissegregacionista dos anos 60

 

Se eu fosse resumir em uma frase, diria “relevante, mas não o suficiente”.

Não me interpretem mal, o longa nos mostra uma primorosa transição de Bob Zellner, o qual trilha uma trajetória de desgarramento dos valores segregacionistas de seus familiares, “amigos” e da camada autoritária racista que o cercava. É encantador acompanhar o protagonista nesta alomorfia de um menino branco, privilegiado e seguidor de regras para um ativista corajoso e consciente de que era necessário uma revolução. Mas estamos falando do homem que se tornou uma das principais figuras na luta por direitos civis igualitários dos anos 60 no Alabama, com uma história extremamente potente e uma influência que não foi instigada aqui. Bem, não de maneira merecedora. 

O cineasta Barry Alexander Brown fundamenta seu mais novo longa, “Filhos do Ódio”, no livro biográfico The Wrong Side of Murder Creek, escrito por Bob Zellner e Constance Curry. No drama indie de baixo orçamento — que conta com a produção executiva do aclamado Spike Lee, vencedor do Oscar em 2019 na categoria de “Melhor Roteiro Adaptado” — Brown decide focar no início do ativismo antissegregacionista do homem que se tornaria um símbolo para o movimento “Mississipi Freedom Summer Project”, o qual visava combater a segregação racial, tendo a anti violência como seu princípio irrevogável.

Veja abaixo o momento em que o produtor do filme, Spike Lee, recebeu a estatueta dourada

 

Zellner é interpretado por Lucas Till (da franquia X-Men), com seu aliciante carisma e uma facilidade extraordinária em mergulhar nas profundas emoções de seu personagem. O filme inicia com uma cena que aparenta ditar o fim da vida de Zellner, o qual está prestes a ser enforcado por um motivo que, até então, está fora de nosso alcance, e é dessa forma que a cena introdutória é cortada e substituída por uma outra que se passa anos antes.

A partir daí, vemos Bob como um universitário engajado nos estudos e muito admirado por todos ao seu redor. Ele está prestes a se formar no Huntingdon College em Montgomery, no sul do Alabama, quando decide atirar-se em uma pesquisa para o trabalho de conclusão de curso com uma temática um tanto peculiar aos olhos dos docentes da instituição: relações raciais. Neste ponto da história, Zeller não se apresenta como uma pessoa atenta e preocupada com as desigualdades ao seu envolto, mas sim como um indivíduo que se interessa em saber como é o estilo de vida das pessoas intituladas “de cor”. Para a realização desta pesquisa, ele e mais alguns colegas de sala (sendo um destes o que mais tarde se tornaria um de seus rivais) se deslocam para uma igreja local congregada por apenas negros. Lá, Zeller conversa com o reverendo Ralph Abernathy (Cedric the Entertainer) e Rosa Parks (Sharonne Lanier), que marcam presença na congregação para comemorar o quinto aniversário do famoso boicote aos ônibus de Montgomery, que ocorreu entre 1955 e 1956. 

A ida de garotos brancos em um culto para negros foi algo que surpreendeu a população, gerando alguns murmúrios na pequena cidade. Não demorou muito para a notícia chegar aos ouvidos da professora orientadora de Zeller, que o aconselhou a evitar uma situação “potencialmente inflamável”. Como o esperado, ele desconsidera o conselho, ao ser atraído pelas impactantes palavras de Rosa Parks. 

Com sua aproximação persistente à comunidade negra e seus eventos de debate, Zeller é quase expulso da universidade e escapa por pouco da prisão.  Por ser branco, ele é inocentado, enquanto o negro que estava no local junto à ele é preso na mesma hora, o que o faz questionar ainda mais seus privilégios.

 

“Um dia você terá que se posicionar. Não dá pra estar em dois lados de uma batalha” – frase de Rosa Parks no filme

 

Neste confronto interior que Zeller trava, somado à tentativa de conviver com suas culpas passadas, ele acaba por ter que fazer o que rejeita de início: decidir de que lado está. É em busca desta decisão que Zeller se alia ao movimento Freedom Riders, em Birmingham. Surpreendentemente, ele recebe o apoio de seu pai para isso. 

O pai de Bob é um pastor metodista, convertido do racismo há muitos anos, devido uma experiência marcante com um coral gospel composto só por negros, ao qual ele se inseriu. O personagem é interpretado por Byron Herlong em um estilo bastante afetuoso e pacífico.

Enquanto seu pai estende o braço para ele, outros (a maioria) se apartam e o reprovam. Sua noiva Carol Anne (Lucy Hale), que de início o apoiava nesta (como julgava ela) “empreitada passageira”, é uma entre estes; ela joga “as cartas” para Zeller e o desafia a fazer sua primeira escolha, entre ela e os Freedom Riders. Não é preciso saber muito da história para adivinhar quem ele escolhe. Ele parte de sua cidade natal rumo à Birmingham, deixando um rastro de inimigos para trás.

Com toda certeza, Carol irá te irritar, mas se a compararmos com o avô de Zellner, veremos que ela não passa de um grão de poeira que pouco incomoda os olhos. O avô do protagonista é um membro com grande poder de influência da organização supremacista e terrorista Ku Klux Klansman e é o principal responsável por causar náuseas no telespectador. 

Ele é o que dá sentido ao título do filme, o qual, de fato, odeia os negros; o mais irritante é vê-lo tentar negar isso em meio à sua hostilidade, com desculpas esfarrapadas e sem nexo. Brian Dennehy (que faleceu em abril do ano passado) interpreta este último personagem de sua carreira com uma tenacidade surreal. Na cena em que o avô de Bob Zellner o adverte, é difícil não temer sua fala, aliada à uma expressão fria e exasperada.

 

“Filho, se eu ver você em um protesto desses, eu mesmo me responsabilizarei em por uma bala na sua cabeça, sem pestanejar.”

 

Inserir na trama este vínculo entre Zellner e seu avô contribui para uma maior compreensão do telespectador referente a pressão imposta ao protagonista. No entanto, há outros fatores que deveriam ter sido descartados. Os inúmeros clichês são alguns dos variados elementos que mancham a potência do longa. Brown decide adaptar aqui uma daquelas trilhas countries amiudadas em filmes do gênero e um triângulo amoroso que se insere aleatoriamente e que faz o telespectador quase perder o foco da temática principal.

Há certas cenas (poucas, mas existentes) que me deixaram um tanto temerosa com o rumo que a abordagem deste filme poderia tomar. Vemos no drama alguns vestígios que podem gerar a ideia de um racismo reverso, o que contrapõe a realidade da época e também da atualidade. A cena em que Zeller é mal recebido em uma lanchonete frequentada apenas por negros é uma destas que, por pouco, não assumiu uma direção bastante drástica, se transformando em uma certa vitimização do indivíduo branco. Felizmente, Alexander Brown soube driblar a situação sem transmitir uma ideia irreal da história.

Você verá aqui um punhado de personagens que poderiam ser um pouco mais aprofundados; Joanne — a que se torna o interesse amoroso de Zeller — entra nesta lista. A personagem é interpretada por Lex Scott Davis, o que é uma pena, considerando o fenomenal alcance da atriz gasto em uma personagem que não foi roteirizada da melhor maneira. Joanne tinha tudo para ser uma adição sólida e intrigante ao enredo, mas acaba se tornando uma personagem estereotipada, com o único objetivo de acompanhar e apoiar Zeller nesta trajetória ativista. 

Son of the South (2020)

Em meio há muitos aspectos frustrantes — incluindo a fotografia rudimentar — o elenco é o que realmente eleva “Filhos do Ódio”. A dramatização e o sotaque sulista americano que cada ator e atriz consegue adaptar em suas falas é de se arregalar os olhos. A confiança presente na linda voz de Dexter Darden, interpretando o corajoso jovem John Lewis, traz uma brandura cintilante em uma das poucas cenas em que ele aparece. Chaka Forman também concentra em sua performance uma certa notoriedade que destaco aqui. 

O esperado é que uma retratação da história de Zellner seja abrasadora, intrigante e profunda em detalhes, os quais se fazem desconhecidos da maioria do público; mas, se não quiser se decepcionar, não entre na sala de exibição ou ligue a TV com esta esperança. Este é um conselho de alguém que manteve as expectativas no alto e se decepcionou.

O filme está disponível em alguns cinemas em funcionamento e para compra e aluguel na Claro Now, Vivo Play, Sky Play, iTunes/Apple Tv, Google Play e YouTube Filmes.

 

Veja o trailer:

Por Jessica Blaine

 

1 thought on “‘Filhos do ódio’ || Uma retratação magnética, porém simplista, de Bob Zellner no ativismo antissegregacionista dos anos 60

  1. Parabéns pela crítica de “Filhos do Ódio” Jéssica Blaine. Muito clara e instigante!

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