A Voz Humana | Com intensos monólogos, Tilda Swinton enobrece novo curta de Pedro Almodóvar || Resenha
Enquanto ‘The French Dispatch’ não lança, o convite de imergir por 30 minutos no puro brilhantismo de Tilda Swinton é irresistível!
Após sair com um machado de uma loja de ferragens — extravagantemente acompanhada de seu óculos de sol em um luxuoso terno azul — a protagonista anônima do curta ‘A Voz Humana’ profere suas primeiras palavras realmente compreensíveis, ao mesmo tempo que reorganiza em pilhas DVD’s de “Kill Bill”, “Trata Fantasma”, “Jackie”, livros de Truman Capote e o clássico romancista “As Filhas de Outros Homens” de Richard Stern; todos perdidos em um mar de obras ou psicóticas, ou romancistas, ou megadramáticas: “Quatro anos seguidos, até três dias atrás, em que eu te esperava enquanto via DVD ou lia”.
Muito bem pensada e desenvolvida pelo diretor espanhol Pedro Almodóvar, a cena faz questão de inserir estes filmes e livros como uma forma de agourar o estado melancólico e, até mesmo, psicologicamente problemático da personagem interpretada por ninguém menos que a vencedora do Oscar de 2008 Tilda Swinton, a qual não só dá conta do recado, como também engrandece o curta com sua performance rica em sensações.
Em ‘The Human Voice’ ou ‘A Voz Humana’, Pedro Almodóvar (de ‘A Pele Que Habito‘ e ‘Fale com Ela’, este último tendo lhe concedido o Oscar por melhor roteiro original em 2003) nos apresenta uma modelo de melhor idade que luta contra o pavor da despedida de seu ex desagradável, mas pelo qual ainda se encontra perdidamente (de fato) apaixonada. Conseguimos compreender a toxicidade extrema desta fadada relação já nos primeiros andares inquietos da protagonista, podendo ser confundidos com um desfile graças aos seus looks de alta costura da Balenciaga, dignos de um MET e que funcionam como uma extensão do estilo conceituado de Swinton (seu traje em azul Capri cintilante no Festival de Cannes deste ano é a prova disso). A personagem atravessa a sala inúmeras vezes à espera de uma ligação; abandonada pelo cônjuge com quem viveu durante quatro anos, ela apenas aspira por uma segunda chance. Com nítidos sinais de depressão, vive um hiato de sua vida, não conseguindo nem mesmo prosseguir com a carreira ou manter vínculos sociais; seu único parceiro é o cachorro do ex, também recusado pelo desalmado.
Com o mínimo de esforço possível e horas de atraso — autocentrado e comodista que é, sem um pingo de responsabilidade afetiva — ele finalmente liga para se despedir por telefone e, principalmente, para lhe pedir que envie por correio suas coisas. A partir daí, as cenas se movem ao redor da conversa, da qual temos acesso limitado: só ouvimos o que a personagem fala, em desespero e tentando fingir sanidade, como se falasse às paredes sobre a terapia, a ida ao teatro com a amiga Martha ou o novo contrato de modelagem (apenas mentiras). Contudo, se bem pensarmos, ela realmente está falando às paredes. O cara pouco se importa ou sequer dá ouvidos aos tópicos que ela levanta, sejam eles simulados ou verdadeiros. Ele nem consegue distinguir.
A Voz Humana é um ponto de viragem para Almodóvar. Este é seu primeiro curta-metragem em 11 anos de carreira e que também marca sua estreia na produção inglesa. O curta é uma adaptação do monodrama homônimo criado pelo consagrado poeta e cineasta francês Jean Cocteau (1889-1963) e encenado pela primeira vez na Comédie-Française em 1930. Ao olhar para a sinopse de ambas as produções, é possível detectar duas únicas diferenças: a primeira é a de que na versão original a protagonista era uma parisiense, não britânica, além de que eram 5 anos de relação e não 4. Então sim, há uma proximidade penhorada acerca da obra de Cocteau (Almodóvar é um fã do artista), mas também com uma boa pincelada de liberdade criativa, liberdade esta que se torna transparente a cada nova cena (o próprio diretor destaca a produção nos créditos como “livremente adaptada“).
É aliciante acompanhar a catarse da protagonista nas linhas de seus monólogos extensos e descontrolados, os quais assumem um senso cada vez mais sincero e empoderador até atingir o ápice em seu epílogo (não, não é o que você imagina).
Em suas primeiras falas, a personagem (propositalmente) gagueja demais, com desculpas e retornos em demasia por pronunciar sentenças que não agradam o ex, mas essa característica narrativa some, quase que aos poucos. Na conversa, ela disserta e percorre entre os destoantes estados de espírito desde a partida de seu amante: aceitação, súplicas, desespero quase suicida e tantos outros degraus que demarcam os vários estágios de luto pelo término, mas comprimidos em um desabafo oscilante.
‘A Voz Humana’ é o resultado da convergência de um roteiro bem composto e uma atriz entregue — de corpo e alma — ao papel. Com o subir dos créditos, o telespectador sabe que escolheu bem a forma em como aproveitar estes 30 minutos passados.
“A inteligência e a disposição de Tilda tornaram o meu trabalho muito mais fácil. Além de seu enorme talento, ela depositou muita fé em meu primeiro projeto na língua inglesa. Foi um presente para toda a equipe ouvi-la falar e se mover pelo set”, diz o cineasta.
A cinematografia por José Luis Alcaine aposta em uma coloração matizada que encanta, mas de uma forma simples e objetiva, sem muitos ângulos e movimentos inovadores ou arrojados.
Pedro Almodóvar já abordou o abandono feminino em seu filme ‘Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos‘, de 1988, entretanto, com vários solecismos no script, o que indica uma formidável evolução em sua filmografia, embora persista em manter um apego à certas temáticas fixadas.
O curta foi exibido nas edições de 2020 dos festivais de Veneza, New York Film Festival e BFI London Film Festival. No Brasil, a nova obra de Almodóvar abriu a ’45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo‘, no último dia 20 (Outubro), e em sessões presenciais ao longo do evento.
Distribuído pela Synapse Distribution, ‘A Voz Humana‘ estreou – em versão legendada – na última sexta (29 de outubro). Disponível para compra e aluguel nas plataformas Now, Amazon Prime, Vivo Play, Google Play e YouTube Filmes.