CronoLoucura – Tempo de um novo começo #000
Tempo de um novo começo
O que eu vou te contar é uma espécie de segredo, mas do tipo que nem mesmo a pessoa mais curiosa conseguiria descobrir. Um segredo que é descrito nas entrelinhas da realidade, contado no ritmo da eternidade. Esse segredo é simplesmente a maior afronta à existência.
Linearidade é meramente ilusão. Imaginar que sua vida segue um fluxo único, direto e irreversível é cometer um erro colossal e grotesco. Imaginar que exista um multiverso que se abre a cada decisão diferente que você toma é estar insanamente enganado.
O tempo possui nuances, possui uma escala gradiente de complexidade incapaz de ser compreendido. Mas talvez o tempo não deva ser entendido. Talvez ele não queira ser entendido. Ou então, talvez ele sequer se importa se alguém o está entendendo. Muitos e muitos tentaram descrevê-lo, muitos e muitos tentaram compreendê-lo, e muitos e muitos falharam no processo.
A questão não é saber o que o tempo é, nem mesmo saber como ele funciona. A indagação que você deve fazer a si mesmo é: por que o tempo me afeta? . E Aqui não me refiro ao fato de estar num planeta com massa suficiente para causar uma grande distorção no tempo-espaço e consequentemente causar uma impressão do quão rápido os eventos ocorrem no seu dia a dia.
Refiro-me a algo mais profundo, mais intrínseco.
Mas dificilmente encontraria uma resposta satisfatória. O tempo em sua forma pura não pode ser compreendido por seres humanos. Falta-lhes faculdades intelectuais suficientes para chegar próximo de sua magnitude. Quem sabe um dia seja possível. Isto, é claro, se o tempo não devorar a humanidade.
Eu me recordo de uma lenda, de uma época que jamais foi conhecida, contada por um povo muito simples, porém muito mais sábios do que aparentavam. Esse povo sobreviveu por centenas de milhares de anos, embora esse período de existência tenha sido bem diferente em sua percepção.
Os “Iamomai”, como se chamavam, não tinham muita prosperidade em plantações, pois a terra em que viviam não era propícia para isso. Viviam numa área machucada pelo tempo, num clima de poucas chuvas durante o ano e que os castigava com a fome e o calor.
Durante as raras noites de chuva forte, costumeiras da primavera, as aldeias nas quais essa população vivia, se reuniam em torno de um enorme buraco que cavavam durante o ano todo, no centro da sua “cidade”. Todos davam as mãos bem na beirada deste buraco, enquanto pesadas gotas de chuva escorriam pelos seus corpos, e desciam até a terra sob seus pés, como se fosse uma forma de conectar o céu, o povo e a terra.
A água caía pelos cabelos grossos e longos de seus integrantes, umedecia suas faces, percorria seus peitos e pernas quase nus, cobertos por alguma forma de tecido rudimentar, preparado especialmente para esta ocasião incomum e penetrava por entre seus dedos descalços até começar a escorrer pela superfície íngreme daquele local.
Eles cantavam algo, olhando para o centro do que seria um pequeno lago quando se enchesse de água, movimentando-se ora para um lado, em círculo, ora para o outro, cuja mudança de direção era definida pelos relâmpagos e trovões.
Conforme cantavam, o lago se enchia de água gelada da chuva. Cantavam horas a fio, a seguinte letra:
A canção do Tempo
“Ó tempo que não nasce
Ó tempo que não cresce
E que senil não falece
Teu ritmo intenso
Deixa-me propenso
Propenso à vida
À terra prometida
À velhice dolorida
À fome vencida
A cada flor colorida
Memória esquecida
Estrada proibida
Envolve-me em teu abraço
Após anos de cansaço
Dá-me tua energia
Dá-me tua sabedoria
Dá-me tua dúvida
Dá-me tua fraqueza
Ó tempo que não nasce
Ó tempo que não cresce
E que senil não falece
Muito Antes de mim
E muito além do fim
Deu-me a visão
A visão de como será
Deu-me a visão
A visão de como fora
Deu-me a passagem
A passagem para teu lado
Deu-me a passagem
A passagem pro inacabado
Ó tempo que não nasce
Ó tempo que não cresce
E que senil não falece
Banho-me em ti
Banho-me em teu saber
Banho-me em tua água
Banho-me em teu não esquecer
Vivi mil vidas
Vivi mil amores
Vivi mil dívidas
Vivi mil temores
Ó tempo que não nasce
Ó tempo que não cresce
E que senil não falece
És o amanhã
Serás o ontem
Foste o hoje
Destino é uma lágrima
Memória é a seca
Presente é o vazio”
E assim repetiam, e repetiam, e repetiam até que o lago enchesse o suficiente para tocar seus pés. Quando esse momento chegava, todos juntos, como se fossem uma coisa só, davam um passo e começavam a adentrar a água repetindo, em uníssono os últimos nove versos da canção.
Enquanto caminhavam ao centro do lago, submergiam cada vez mais naquela salvadora água. Até que todos sumissem debaixo de sua superfície.
Todos os anos havia uma chuva assim, e consequentemente todos os anos eles faziam esse “ritual”. Todos os anos, por centenas de milhares de décadas, esse estranho povo cantava sob a chuva, entrava no lago recém formado e nunca mais retornava…
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