Fruto da Memória | A sagacidade invejável do cinema grego na tragicomédia || Resenha

Os últimos anos nos ajudaram a perceber que o cinema internacional pra além de Hollywood vale nossa atenção. Então que tal dar uma chance para este?

Nunca uma palavra foi tão presente em nosso dia a dia como “pandemia” é agora. Em súbito, uma doença surge ou se acentua e começa a colecionar vítimas, uma atrás da outra e, na maioria das vezes, nem sabemos como. Sociedades são afetadas, a ciência se vê de mãos atadas e todos se encontram perdidos em um mundo tragicamente novo; uma rota, aparentemente, sem retorno. É o que acontece também em ‘Fruto da Memória’. Eu sei, nós estamos exauridos de tanto ouvir sobre Covid, mas calma, a doença em questão aqui é a amnésia. 

A tradução de títulos que o Brasil adota ao distribuir obras internacionais são quase sempre frustrantes, é como se subestimassem nossa inteligência. Digo isso porque, se fosse traduzido à risca, o título deste longa grego se chamaria “maçãs” (Mila) e traria um simbolismo significativo muito maior, o que não demandaria muito tempo para o telespectador entender. Maçãs são tidas pela medicina como o fruto que protela Alzheimer, assim como demais doenças mentais. Surpreendentemente, Aris (o protagonista) é viciado por elas — inicia e termina o filme mastigando pedaços de maçã — ainda assim, não escapa da doença.

O longa recebe a presença da atriz Cate Blanchett na produção executiva e é considerado como a estreia de Christos Nikou na direção, mas nem tanto, já que o mesmo foi o diretor assistente de Richard Linklater na afamada obra ‘Antes da Meia Noite’ (de 2013), que recebeu na época 98% de aprovação da crítica especializada. Acontece que só aqui (pela primeira vez) ele toma realmente as rédeas, assumindo sozinho a direção do filme e, adianto, com uma originalidade extremamente acurada.

O papel protagonista recebe o mesmo nome do ator que o interpreta, Aris Servetalis. É bastante curioso como alguns filmes sobre amnésia optam por não dar um nome diferente ao personagem, foi o que também aconteceu em ‘Meu Pai‘. Force a memória um pouco e se lembrará que o personagem demente se chamava Anthony e era protagonizado pelo próprio Anthony Hopkins, que, inclusive, levou a estatueta do último Oscar de melhor ator. 

Aris é um homem de meia-idade que vive sozinho em um apartamento após o divórcio, quando então é afetado pela pandemia mundial que causa amnésia súbita. Os cidadãos, de repente, esquecem onde estão, porque estão lá e, até mesmo, características de sua própria personalidade, alguns não se recordam nem de seus nomes, inclusive o próprio Aris, ao não conseguir encontrar seus documentos. Após ser acometido pela doença, o protagonista é levado por autoridades locais a um hospital neurológico, onde o convencem  a entrar em um programa de “recuperação”, desenvolvido por médicos do Departamento de Memória Perturbada e que se apresenta como uma técnica experimental que visa ajudar os pacientes a construir novas identidades, caso suas famílias não entrem em contato. 

Assim como no início da pandemia da Covid-19, no filme, os cientistas e a mídia também se vêem alheios ao que realmente está acontecendo no mundo, eles apenas sabem que houve um eminente aumento de casos de amnésia que eles não conseguem explicar e, muito menos, solucionar. 

A história não se passa no presente, mas sim em uma espécie de passado não tão distante. Eles não determinam um ano em específico, mas eu chutaria 2000, já que a sociedade retratada vive em uma era analógica prévia aos celulares e às redes sociais, o que se apresenta como um ponto positivo nessa construção de relacionamentos do protagonista para com os outros personagens ao seu redor; são elos muito mais difíceis de se construir, mas, ao mesmo tempo, divertidos de se acompanhar, como a relação entre Aris e a expansiva Anna, uma paciente que está um pouco mais evoluída na recuperação (interpretada por Sofia Georgivassili) e que ele encontra ou — melhor dizendo — ela encontra ele em uma das atividades diárias que o programa de recuperação estabelece aos pacientes. Essas atividades variam entre tarefas atléticas, culturais ou de sociabilização. Após realizá-las, a pessoa deve registrar o feito através de uma câmera Polaroid e anexar a foto em um álbum diário, para comprovar que está seguindo o processo com exatidão. As atividades são noticiadas todas as manhãs em um aparelho semelhante a um rádio. 

Nenhuma amnésia é o bastante para o Fruto da Memória – Persona | Crítica Cultural

Há um senso irônico na trama, inserido por Nikou quase como uma crítica  acerca da cultura de selfies do século 21, onde muitas pessoas vivem de forma mecanicista, indo à festas, parques e outras atividades de lazer apenas para simular traços de diversão irreais, quando que, ao desligar as câmeras, expelem em suas faces puro tédio, bem naquela noção “vou tirar uma selfie para o Instagram e cair fora daqui“. É exatamente o que acompanhamos em Aris. Ele segue o cronograma, mas sem um pingo de entusiasmo ou prazer nas atividades prescritas, pelo menos até conhecer Anna no cinema. A tarefa do dia era assistir um filme, aparentemente assustador, se considerarmos as expressões pavorosas de Anna. A personagem traz uma boa pincelada de jovialidade e chinfra à história, será difícil alguém não se sentir conquistado pela performance dinâmica e altamente cômica de Sofia. A cena no carro, onde ela fala ao volante sobre Titanic, quase como uma breve resenha boa até que demais para uma pessoa com amnésia, é a comprovação de sua atuação espirituosa e eletrizante, conciliada ao roteiro bem estruturado de Nikou  e Stavros Raptis.

 

“— Uma garota muito bonita, uma ruiva… E sua mãe queria casá-la com um cara rico, mas ela se apaixonou por outro, um homem pobre, ele havia ganhado em um  jogo de cartas… E todos viajaram juntos em um grande navio, um velho navio.

— E depois?

— Então o navio afundou e todos se afogaram, menos ela.  Já viu esse filme?

— Não me lembro.”

Algumas das cenas coestreladas por eles são realmente gargalháveis. Um simples momento no bar, se torna uma mistura de passos descompassados com movimentos esdrúxulos e, ainda assim, contagiantes. 

Os mais românticos se verão torcendo pelo casal em seus últimos momentos, dada a inegável química dos atores. Entretanto, Nikou dispensa os clichês aqui e busca transmitir a realidade cruel de duas pessoas destoantes e em cacos, que se encontram por obra do destino, mas que não são capazes de fundamentar a relação.  Eles tentam fugir do fato, contudo, é inevitável, ferem os sentimentos um do outro sem, ao menos, saberem disso. A verdade é que Aris é acomodado em sua solidão, indisposto a se abrir e vive com medo de ser traído, então quando acha que foi, não dá nenhuma chance à dúvida.

Aprecio a honestidade excruciante de desfechos que fogem da ilusão de um “felizes para sempre” acerca do casal central do enredo — assim como acontece em verdadeiras peripécias do cinema, tais como ‘La La Land’, ‘Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças’, ‘Blue Valentine’, ‘A Teoria de Tudo’ ou o próprio ‘Titanic’. Este é um modo perfeito de desconstruir narrativas fixas do tipo “não importa que ruínas aconteça no meio, no fim tudo acaba bem“, maquiadas de uma plenitude um tanto animalizada.

Enquanto a trama foge da normalização, a fotografia faz justo o oposto: em um frame contínuo de 4:3, ela se mantém trivial e, até mesmo, apática, com um escopo de cores sempre em tons pastéis ou neutros, no intuito de construir um certo retrato emocional do protagonista, que se encontra totalmente absorto e indiferente a respeito de sua recuperação e futuro.

Ele, de fato, desiste. Como já havia dito, Nikou não mascara ou fantasia em seu filme a triste realidade de pessoas com Alzheimer ou amnésia, há uma sinceridade aguçada aqui.

Após ser exibido no Festival de Veneza do ano passado, o filme concedeu à Nikou e Stavros o Prêmio Silva e Hugo de Melhor Roteiro no Festival de Chicago (CIFF),  e também foi o escolhido para representar o cinema grego na categoria de ‘Melhor Filme Internacional’ na corrida pelo Oscar deste ano, o que não surpreende, dada a forma como Nikou expele o material de ‘Fruto da Memória’. Aqui, o diretor consegue balancear a tragédia e a comédia sem superficializar sua séria temática de saúde mental, mas também encantando e divertindo quem assiste, facilitando ao telespectador a empatia pelo personagem central da trama. “O que eu faria no lugar dele?”, “Eu estaria sozinho assim?”, “Meus familiares me encontrariam?”, “Poderia confiar nessas pessoas ou não?”; interrogações que até os mais sociáveis não deixarão de se questionar.

Talvez o fato de também estarmos encarando uma pandemia seja o elemento central  para que o contexto da obra se faça ainda mais identificável ao público, tornando uma situação que poderia ser facilmente interpretada como absurda, não tão impossível assim.

Desde o último dia 05, ‘Fruto da Memória’ está disponível para compra e aluguel nas plataformas digitais Claro Now, Amazon, Vivo Play, iTunes/AppleTV, Google Play e YouTube Filmes. O longa é distribuído pela Synapse Distribution e pode ser conferido em sua versão legendada.

Por Jessica Blaine

 

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