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Enquanto isso em Marajó…

Em 2024, Aymee Rocha viralizou nas redes sociais ao cantar uma música que denuncia diversas atrocidades sexuais envolvendo menores de idade. Mas este filme não é sobre a Aymee. É sobre Marciele, uma menina encantadora de 13 anos, que desenha, brinca como qualquer outra criança e vive em meio à floresta — bonita, aparentemente. Apelidada de “Mana” pelas colegas da escola e chamada de “Tiele” em casa, ela é apresentada na primeira camada do filme, que vende a imagem publicitária do estado do Pará: florestas lindas, banháveis águas doces, uma natureza abundante e verdejante, com muito açaí — tudo parte da cultura local. O início chega a parecer um cartão-postal.

Se em algum momento eu falhar na escrita dessa resenha, eu peço desculpas, porque ainda estou em choque pelo que eu assisti.

Manas : Fotos

Mas eu não vi trailer, como sempre curto. Fui pego totalmente de surpresa, como um assalto por trás seguido de violência física, sem nenhum preparo psicológico. O impacto foi como ser atropelado por um veículo a mais de 80 por hora, de frente com uma realidade crua do Brasil. Não exclusiva de Marajó, mas que se repete em estradas, comunidades, cidades e becos do país — e do mundo afora. O que mais dói nesse filme é a impotência que sentimos. E é exatamente como me sinto agora: impotente. Saber que isso está acontecendo nesse exato momento e não poder fazer absolutamente nada. O que uma pessoa no meio de 100, 500, mil poderia fazer? Vale a pena vestir uma camisa de justiceiro e viajar até a ilha pra fazer justiça com as próprias mãos?

É pra pesar a consciência mesmo.

Ver esse filme numa cabine de segunda-feira me destruiu. Não era o melhor jeito de começar a semana. Precisei buscar dentro de mim o que há de mais crítico pra tentar neutralizar a angústia. A dor ainda está aqui, moendo por dentro. O filme é baseado em fatos reais, inspirado no relato de uma moradora que passou pelo episódio. E, apesar de toda essa carga emocional, há algo de muito bonito no modo como ele foi feito: a técnica de filmagem me colocou como testemunha — como se eu fosse um objeto flutuante na floresta, ou a própria natureza, vendo tudo acontecer sem poder interferir. Não há cenas explícitas. E isso foi uma escolha cinematográfica extremamente sensível. A beleza estética não suaviza a dor — mas a amplifica de forma poética.

Cinematograficamente bem feito.

Manas

O roteiro é cheio de falas que cortam feito lâmina. Uma, em especial, me atravessou como um caco de vidro, como uma barra de ferro quente na pele, ou muito mais que sal na ferida: uma personagem, interpretando um fato real, diz à outra menina que “o que acontece em casa é muito pior do que o que acontece na balsa”. Pra quem é ingênuo, talvez demore a entender o que está se passando. A gente espera, a todo momento, que aquilo seja só uma sugestão, uma ilusão, que alguém vá negar o que vimos. Mas a realidade está ali, nua, sem espaço pra fuga. E os dados do IBGE estão aí: a violência sexual contra crianças é, majoritariamente, cometida por parentes ou pessoas do convívio familiar. Isso dói mais ainda. É como se o chão sumisse.

Olhando bem os detalhes, peça ajuda, ou ajude.

Hoje eu perdi o apetite. Preciso me recolher. Ficar comigo mesmo. Embora o filme tenha um final feliz — não um final romântico shakespeariano, mas um feliz trágico —, ele deixa um gosto amargo. Um grito por justiça. Mesmo que, no fundo, a gente saiba que é só uma história que virou filme… enquanto outras histórias reais estão acontecendo, agora, sem intervenção alguma. Sem ação dos pais. Sem atenção das autoridades. Envolvendo política, omissão e negligência em muitos níveis. Hoje eu não quero contato com ninguém. E aí alguém ainda pode dizer que esse filme foi só um bom drama. Mas, pra mim, ele foi um soco. Um filme que pegou toda a realidade que eu fingia não ver e jogou na minha cara — sem nenhuma ficção pra me proteger.

Parabéns aos envolvidos pela obra cinematográfica.

#justiçapormarajo #nãoàviolênciasexual

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