Quem conta um conto…

Pessoal estamos hoje começando um novo passo aqui no nosso site: Contos e poesias. E para começar vamos trazer um conto de autoria própria do nosso querido:  João Henrique. Espero que gostem assim como eu fiquei encantada com esse pequeno conto.

Então para o deletei de vocês O Réquiem De Amadeus

A maior parte das histórias é sobre a vida de alguém, geralmente alguém importante. Mas essa não, essa é uma história de morte, e não uma daquelas mortes cinematográficas com uma bela motivação heroica. Não. Apenas mais uma morte de mais uma pessoa. Pessoa essa que vem a ser eu. Agora provavelmente você deve estar se perguntando “e como que o morto poderia contar uma história?”. Eu também não sei. Pergunte para Brás Cubas, ele certamente teria uma resposta melhor.

Eu ainda sou novo nessa coisa de estar morto. Nesse exato momento estou vendo a mim. Ou ao menos o que eu costumava ser. Ao meu lado estão minha mãe e Marcela. É estranho ver as duas ali chorando em cima do que resta de mim. Pois eu sei que na verdade ali não tem mais nada de mim, é só uma carapaça, um monte de ossos, músculos, órgãos…tudo inútil que em breve vai ser mera comida de minhoca. Mas eu compreendo o fato de que elas não enxerguem assim. A MORTE é realmente algo muito chato. Para quem fica vivo é claro, pois pra quem morre, bom não acontece muita coisa. Ah, eu ainda não sei bem, não faço idéia do que vai acontecer daqui pra frente. Mas antes de qualquer coisa, vou lhes contar como cheguei aqui…

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Há um ano atrás fui diagnosticado com uma doença rara cujo o nome não me preocupei em decorar, o médico disse que eu teria no mínimo mais um ano de vida. Minha mãe não aceitou esse diagnóstico e me levou em uma dezena de outros médicos. E como já era previsto todos disseram a mesma coisa. A MORTE era o único caminho. 

Minha mãe insistia em negar, mas eu já havia aceitado a desgraça no terceiro diagnóstico. Mamãe se apegava na fé, dizia que para Deus nada era impossível, que médicos são só homens… todo aquele lenga lenga. Ela acreditava que um milagre aconteceria, já eu preferia acreditar na ciência. Agora sabemos quem estava certo… Mas eu não achava ruim ela acreditar que algo mágico aconteceria e eu voltaria ser um jovem saudável, acreditar nisso fazia ela se manter forte. E eu preferia ver ela esperançosa do que afundada em uma depressão… cada um lida de uma maneira diferente. Eu preferi aceitar, me parecia mais fácil, não me iludir e apenas esperar…

Assim que o médico disse que me restava no máximo um ano, fiz questão de colar um calendário no meu quarto, e sempre que acordava, ia até lá e riscava um dia. Pode parecer meio masoquista, mas não é o caso. Já que a morte era minha única certeza, preferi abraçar ela, e não a encarar como uma vilã, digamos que me associei a ela. Meu despertador passou a ser o Réquiem de Mozart. Réquiem esse que ele compôs a beira de sua morte… Toda vez que eu ouvia aquela melodia, me sentia mais próximo da morte, à cada nota, era como se eu fosse menos dono do meu corpo!

Mas em meio à todo esse meu ritual mórbido, minha mãe insistia que eu levasse uma vida normal. Então ela me obrigou a ir à escola todo santo dia!

–Por que devo ir à escola, sendo que vou morrer?

–Todo mundo vai morrer, sendo assim ninguém iria à escola.

– Okay, mas antes de morrer a maioria dessas pessoas vai precisar dos conhecimentos da escola pra arrumar um emprego, entrar na faculdade… O que não é o meu caso.

–Você não sabe disso, não pode ter certeza.

–Eu não preciso ter certeza, os dez médicos onde você me levou, eles já tem certeza por mim!

–Quantas vezes médicos deram 1 ano de vidas para pessoas e elas viveram 80?

–Talvez duas em um milhão. 

Daí pra frente minha mãe começou um longo discurso sobre milagres, do qual eu irei lhes poupar. No fim das contas ela sempre me convencia, e eu ia à escola, que era um saco. A única coisa que me fazia feliz lá era a Marcela, e não, ela não era meu interesse amoroso. Meu interesse amoroso era uma menina que eu via todo dia no ônibus, mas nunca falei com ela, pois eu virava um zumbi toda vez que chegava perto dela…

Agora voltando a Marcela, ela sempre me animava, e olha que nem fazia muito esforço pra isso.

–Não, Não parece–disse marcela segurando meu queixo.

–Não parece o que, doida?

–Você não parece um maribondo.

–Maribondo?

–Aqueles caras prestes a morrer.

–Moribundo, Einstein! 

Depois desse belo diálogo nós tivemos aulas muito chatas, com professores muito chatos, que tal qual todos naquela escola me tratavam como um pobre coitado só porquê eu estava prestes a morrer.

Ao sair da escola Marcela foi à minha casa, ao chegar lá flagramos minha mãe mexendo nas minhas coisas.

–Ora Ora…O que você tá fazendo?

–Eu estava limpando esse chiqueiro que você chama de quarto quando encontrei isso–virou um caderninho de capa preta em nossa direção.

Marcela foi mais rápida que eu e pegou o caderninho das mãos de Minha mãe. 

–”Listinha da morte”. QUE PORRA É ESSA?

–Obrigado por invadir minha privacidade–disse eu pegando meu caderno–É só uma lista de coisas que eu gostaria de fazer antes de morrer. Todo mundo tem uma–olhei para elas e as duas estavam com cara de negação.

–E o que tem nessa lista?–indagou minha amiga. 

–Nada de ma…–antes que eu pudesse terminar a frase marcela tomou o caderno das minhas mãos. 

–Aprender andar de bicicleta–começou ela a ler a lista–dançar uma valsa ao pôr do sol com o amor da minha vida.

–O objetivo é me deixar sem jeito?

–Fica quieto que tem mais–disse minha mãe–continua, Marcela!

–Espancar o pateta! Espancar o pateta?

–A lista é minha né? Deixa eu com meus desejos mórbidos!

–Tá, mas…Espancar o pateta?

–Porra–Eu revirei os olhos–ele é o símbolo maior da injustiça! Ele é a porra de um cachorro que nem o pluto! Só que o coitado do Pluto não pode ter um carro, ou vestir uma roupa! E ainda tem que obedecer um rato!

–O Mickey é um camundongo –Me corrigiu Marcela como se fosse um fato muito relevante–mas okay, continuando… Ah, só tem mais um item: Matar meu pai!

–Ah, isso a cirrose fez por mim dois meses atrás. 

As duas começaram a rir e eu saí do quarto, rumo ao banheiro pois estava me cagando. Ao voltar, me deparei com Marcela e minha mãe conversando como se planejassem algo. Eu perguntei sobre o que elas falavam, mas as duas mudaram de assunto no intuito de me enrolar. Mas logicamente eu percebi que elas estavam planejando realizar meus últimos desejos… E até que elas conseguiram dentro de seus limites…

****

No dia seguinte Marcela apareceu na minha casa com uma bicicleta cor de vinho. “Tá pronto pra cair muito?” Disse minha amiga com um sorriso que me parecia uma mistura de amor e sadismo…Marcela era meio estranha. 

Ao longo do dia levei umas 14 quedas. Mas para minha surpresa aprendi a andar naquela linda bike! Me achei muito foda por ter aprendido em apenas um dia. Antes disso, eu sempre tinha sonhos nos quais eu pedalava, e eram os melhores sonhos, melhores até do que os que tinham sexo! Era uma sensação divina, inexplicável! Mas quando eu finalmente me equilibrei e pedalai de verdade, percebi que era muito melhor do que nos sonhos! Era como se eu por alguns minutos fosse livre de verdade, parecia me transportar à uma realidade alternativa, onde nada mais existia, só eu, a bicicleta e o vento que batia no meu rosto! PERFEIÇÃO! 

O empenho em realizar meus desejos continuou, alguns dias depois minha mãe me levou no meu lugar preferido, um antigo hotel desativado que agora serve apenas como centro cultural. Do alto desse lugar perfeito, tínhamos à vista um rio e o pôr do sol mais bonito que se poderia ver.

Só de estar lá eu estava muito feliz, mas quando entramos, encontrei um grupo de músicos muito bem vestidos.

–Quem são eles?–perguntei à minha mãe em meio à um sorriso

–São uns amigos, vieram tocar uma Valsa–passou a mão em meu rosto.

Ali eu captei tudo, fez mais sentido ainda quando Marcela apareceu com um lindo vestido vermelho de costas nuas, seu cabelo preso em um rabo de cavalo, do jeito que ela sabia que eu mais apreciava. Ela estava linda. Agora eu entendia porquê minha mãe havia me obrigado a pôr um terno (Que me caiu muito bem, aliás).

–Eu sei que não sou o amor da sua vida, mas tem a valsa, o lugar é legal…já é alguma coisa né?

–Isso já é mais do que perfeito–abracei ela e demorei muito, muito, muito tempo para soltar–Eu te amo!

–Eu te amo–sussurrou ela bem baixinho no meu ouvido. 

Dançamos por horas, o tempo voou. Como eu disse, aquilo era mais que perfeito! O lugar perfeito, a música perfeita, a dança perfeita com a pessoa que era perfeita com todos seus defeitos! Eu estava feliz!

Ah, e depois de alguns minutos mamãe agarrou um dos músicos e começou a dançar com ele. Estávamos todos felizes!

Os dias que se seguiram foram mais difíceis, os sintomas da doença pioraram, fiquei de cama, sentia dor até ao piscar os olhos. Eu não queria ver ninguém, pela primeira vez a morte começava a me assustar, percebi que toda minha estratégia de me afeiçoar a dita cuja, tinha ido pro brejo. Eu estava triste, afundado em auto piedade, só queria desferir ódio pelo mundo. 

Minha mãe e Marcela insistiam em falar comigo, mas eu recusava sempre. Acabei até tratando elas mal…essa é a coisa da qual mais me arrependo. Mas depois de alguns dias, eu não tinha mais força pra recusar qualquer coisa, então elas entraram no quarto.

–A gente te ama! Mesmo quando você é um babaca–Eu ri enquanto Marcela dizia isso ao tocar minha mão–e de certa forma você tem direito de ser um pouquinho chato agora. Mas a gente não vai sair do teu lado, enquanto você estiver aqui, a gente vai estar junto. 

Eu queria pedir desculpas, mas não tinha força pra falar, então só olhei para elas e sorri…

–Olha, eu trouxe um presente–disse minha mãe agora mostrando o que ela tentava esconder nas costas desde que entrara no quarto.

Eu tirei forças não sei da onde e dei uma longa gargalhada ao ver aquele Pateta feito de pelúcia. Peguei ele nas mãos,  dei um tapa, depois outro e outro. Bati tanto quanto pude, toda minha raiva e tristeza foi direcionada ao coitado do pateta. Logo eu comecei a chorar, mas depois do nada comecei a rir, e aquelas duas mulheres incríveis que estavam comigo riram junto…passamos um bom tempo ali rindo sei lá do que, até que uma fraqueza total tomou conta de mim. Eu fui apagando aos poucos. Comecei a ouvir o Réquiem de Wolfgang Amadeus Mozart tocar em minha cabeça e de novo aquela conhecida sensação de não ser dono do meu corpo, mas agora com uma força muito maior. Só que não era ruim, eu gostei. Me veio uma paz que nunca antes havia experimentado, eu estava indo embora…Mas não doeu. A última coisa que vi foram os sorrisos das duas pessoas que mais amo no mundo…

Até que foi uma vida boa…

@xoaohenrique.

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