‘Alvorada’ | Com sua abordagem intimista, documentário apresenta filmagens até então inéditas dos últimos meses de Dilma no poder

Aí sim!

A alma de um projeto documental é a ação de retratar pontos importantes da história humana com um olhar crítico e meticuloso, trazendo assim a reestruturação da narrativa de um determinado acontecimento. É o que acontece aqui; neste longa, vemos um dos principais e mais polêmicos episódios políticos nacionais em um formato mais destilado. 

Não o chamaria de um documentário revelador, já que muito ainda permanece vago e não tratado, mas posso dizer que, passado cinco anos desde o impeachment de Rousseff, é possível ter uma visão mais ampla e descorrida sobre o caso. Já de início, é nos apresentado em segundo plano algumas agressivas e ainda recentes falas de Bolsonaro a respeito desta temática (por sorte, são as únicas que aparecem aqui). Logo após, vemos passar pela tela, em uma leve transição,  a data que dá o pontapé inicial à temática central do longa 17 de abril de 2016. A Câmara dos Deputados havia autorizado a instauração do processo de impeachment contra a até então presidente Dilma Rousseff. É bem provável que você rememore o acontecimento, foi um marco na história política brasileira, um dia banhado em antíteses em uma sociedade altamente ambivalente. Enquanto alguns brasileiros gargalhavam e gritavam de satisfação por vislumbrar uma possível  “libertação” do governo na época em vigência (o Partido dos Trabalhadores), outros não se continham ao lamentar pelo pavor do que ainda viria a acontecer. Entretanto, por melhor que seja sua memória, o que você e eu recordamos de tal data e os cinco meses que se sucederam a ela se limita ao que vimos e ouvimos dos dizeres de repórteres na TV, na rádio, ao que lemos nos jornais, à narrativa da mídia em geral. Até porque, o que aconteceu nos corredores e salas altamente restritas do Palácio da Alvorada após esta decisão da Câmara é inacessível a nós.

[Bem, vamos corrigir isso aqui e colocar esta frase no passado verbal:  “era inacessível a nós”, agora sim!]

 

Anna Muylaert e Lô Politi decidem mudar esta realidade, facultando mais do que uma simples perspectiva espectadorizada sobre o último impeachment que vivenciamos em nossa nação. Em sua nova obra cinematográfica, o  documentário “Alvorada”, a dupla de diretoras insere o telespectador no centro do caos e o faz enxergar tal contexto governamental pelas lentes dos mais afetados, os de dentro do Palácio da Alvorada.

Alvorada foi rodado de abril á setembro de 2016. Com sua abordagem intimista e acidentada, ele traz consigo um enquadramento da história que se destaca de outras augustas obras documentais políticas nacionais. Como exemplo de comparação, podemos pegar o recente e célebre longa documental “Democracia em Vertigem” (2019) de Petra Costa, que inclusive foi indicado ao penúltimo Oscar na categoria de “Melhor Documentário”. Foi um filme feroz e transparente do acontecimento aqui também retratado, mas foi mais focado em como o impeachment refletiu no Brasil e mundo para fora do perímetro do Palácio, enquanto aqui acompanhamos o avesso disso: o dia a dia da presidente e de sua equipe, o corre-corre, a pressão, a esperança se esvaindo, mas ao mesmo tempo o estoicismo inabalável de Dilma que a faz lutar até o fim perante todo este processo altamente áspero e fatigante.

“Eu não tenho medo de perder, eu não tenho mais nada a perder e aí dá uma imensa tranquilidade na vida, mas [o fato de não temer a perda] não significa que não se lute, né?! Sistematicamente.”

Somos como intrusos na “casa” da presidente, apenas observando suas conversas analíticas, filosóficas e políticas com sua equipe e para as câmeras, as quais se assemelham a uma conversa bastante íntima entre anfitriã e convidados. Com citações e analogias de obras clássicas de muita relevância, vemos a tamanha intelectualidade dela que foi tão banalizada durante anos. Os discursos, por vezes nervosos e confusos, deram uma impressão ao público de despreparo e incapacidade, mas não é o que vemos aqui. Neste longa, Dilma levanta proeminentes pautas que se fazem bastante ausentes da política atual brasileira. 

“Nenhum país tem a quantidade de anos que tivemos de escravidão. A lógica da elite brasileira não pode ser comparada à lógica das outras elites, não é igual.”

O enredo é desenvolvido durante os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, evento pelo qual Dilma foi bastante criticada. Por esse motivo, vemos uma fala ou outra referente a festividade esportiva. A câmera, constantemente, faz uma espécie de tour pelos cômodos da casa, o que só aumenta este sentimento bisbilhoteiro nos que assistem. Entre essas cenas, testemunhamos alguns isolados momentos do espetáculo através da TV do Palácio, enquanto a voz de Dilma enuncia apenas um lamento de não poder participar da cerimônia do evento, já que estava afastada de seu mandato (nelas senti um certo paralelo com as cenas da série The Crown, onde a família real se reúne em frente a TV).

Muylaert e Politi inserem na obra alguns encontros da presidente com a imprensa, entrevistas nacionais e internacionais, uma delas foi para o renomado jornal britânico BBC News sobre as Olimpíadas. Cautelosa e comedida, Dilma responde os questionamentos dos repórteres que buscam reiteradamente uma “manifestação” do desenrolar do processo no congresso.

Admito que muitas das cenas se desenrolam arrastadas e de modo enfadonho, um fator que pode comprometer o interesse de muitos telespectadores. Mas, em compensação, há também momentos que induzem nossa curiosidade e apreciação, os quais se inserem com bastante tensão em seu plano de fundo, é o que cria este fênomeno “montanha-russa” aqui presente. O fator “família” é existente aqui, mas nem sempre o cenário é cordial, vemos uma presidente que não se curva aos desejos de todo aquele que critica suas próprias escolhas. Ela sabe o que quer e, enquanto estiver no poder, não abrirá mão disso sem contestar.

A fotografia é bem simplista, os enquadramentos são de maioria abertos (em Plano Médio Longo – PLM), mas a força da narrativa acaba por tornar este fator, geralmente não tão apreciado, um detalhe quase imperceptível. A sonora é o que dá um toque a mais de dramaturgia, com trilhas orquestradas e instrumentos de corda em sobressalência. 

Rousseff é claramente a protagonista desta obra, mas outros personagens anônimos também marcam presença no longa e roubam nosso olhar. Cozinheiros, seguranças, zeladoras e tantos outros funcionários do governo são flagrados pelas câmeras, circulando pela casa e cumprindo suas respectivas funções. O ponto que chama a nossa atenção é a intimidade entre a presidente e esses indivíduos. Os vínculos contratuais deles e a demissão de muitos pela incapacidade do governo em mantê-los em meio à uma crise financeira nacional elevadíssima é um assunto que acaba por vir à tona, ao ser citado em uma cena:

“Toda semana temos exonerados, funcionários que construíram carreira aqui, o problema é que daqui a pouco a falta de funcionários é tanta que a casa da presidenta pode parar”.

Muitas pessoas são adeptas da ideia de que não há uma tensão telespectiva em assistir um documentário, afinal (em sua maioria) já temos por conhecido o final da história. Eu acho que essas pessoas teriam uma nova mentalidade se assistissem este. Nas cenas que mostram a presidente e sua equipe aguardando o veredicto final do Senado em sua residência oficial, o Palácio da Alvorada, o que não falta é tensão. Todos os presentes na casa esbanjam olhares apreensivos, alguns até seguram as mãos uns dos outros como sinal de apoio mútuo.

O filme apresenta dois lados da presidente, o inatacável e, por vezes, divertido: “Eu sou mestra em tango. Aprendi na cadeia.” Mas também o vulnerável e amedrontador: 

“As câmeras são invasivas e, por vezes, excessivas. Casualmente eu sou presidente da República, mas eu não sou uma personagem o tempo inteiro, tem coisas que não vou permitir [gravarem], enfrento problemas todos os dias […] Eu temo as consequências desse verdadeiro golpe”.

Como já é de conhecimento de todos nós, Dilma de fato sofreu o impeachment. Foram 367 votos favoráveis contra 137 contrários, com apenas sete abstenções e somente dois ausentes dentre os 513 deputados. Contudo, após a votação de 31 de agosto de 2016, em sua saída do Palácio da Alvorada, o que não faltava eram aliados, munidos com seus gritos de guerra “Olê, olê, olá, Dilma, Dilma” e cartazes  de apoio á sua trajetória como Presidente da República (um deles, mostrado no longa, tinha o seguinte dizer análogo: “Até logo Presidenta Digna”).

O cenário pós impeachment, como o esperado, não foi nada pacífico, revoltas dominaram as ruas de um país que se dividia cada vez mais. Protestantes a favor da presidente, em frente ao Palácio da Alvorada, diziam: “Eu não acredito, um bando de corruptos, um bando de ratos!

Nas cenas finais de Alvorada, acompanhamos a emotiva despedida de Dilma á todos aqueles que compunham sua equipe, marcada por uma mistura de choros quase inaudíveis e leves sorrisos. Aos poucos, os móveis e objetos pessoais vão sendo removidos do Palácio e endereçados ao Rio Grande do Sul, seu novo lar. 

Com a casa já quase vazia, é hora de limpar, as zeladoras aproveitam para fazer sessões de foto no escritório presidencial que logo logo seria ocupado por um novo presidente em um sistema político pra lá de efêmero e rotativo. 

Nenhuma descrição disponível.

Sejamos petistas ou não, um fato inegável é que Dilma construiu uma marca jamais cabível de se reprisar em seu próprio nome, nome este que sempre se fará presente na boca do povo. Rousseff foi e sempre será a primeira presidente mulher do Brasil ou, como ela mesma preferia, “presidenta”. Alvorada é mais uma amostra (com certas brechas, não vou negar) do pavor do que veio a ser o fim de uma era representativa, plural, onde a minoria brasileira via maiores oportunidades do que nos dois governos que se sucederam. Trazendo uma abordagem um tanto romantizada, o longa retrata de modo inaudito e envolvente a tenacidade de uma mulher no poder, mesmo em meio à pressão e rejeição pública.  

“Nunca fui diferente disso, eu não desequilibro!”

 

A distribuidora do longa (Vitrine Filmes) optou por um lançamento simultâneo nas salas e no streaming, com estreia nas plataformas Now, Oi e Vivo Play no próximo dia 27 (maio). Em primeira mão, Alvorada foi exibido no 26° Festival de Cinema “É Tudo Verdade”. O longa também tem recebido notoriedade internacional, sendo um dos selecionados para o Festival de Cinema Britânico Sheffield Doc Fest deste ano.

Por Jessica Blaine

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