{Resenha} Libelu – Documentário não poupa em esclarecimentos, resgata registros inéditos e entroniza o Rock

=D

“A Libelu foi talvez a coisa mais importante que aconteceu no Brasil no século 20 entre a juventude. Eu não conheço nenhuma experiência que tenha produzido tanto impacto e tanta mudança na esfera espiritual de jovens quanto foi na Libelu, eu não conheço!”

Com esse dizer convicto e um tanto presunçoso do professor e jornalista José Arbex Júnior, inicia-se o novo documentário da Globo Filmes, de título homônimo — Libelu — o qual elucida um dos principais movimentos universitários de toda a história humana, este que pôs em xeque a ditadura e que, por este mesmo motivo, foi alvo de violência militar e linchamentos de várias espécimes da elite paulistana. 

Em tese, Libelu (originalmente intitulada Liberdade e Luta) foi uma tendência trotskista do movimento estudantil brasileiro, fundado em 1972, que buscava lutar pelas liberdades individuais em tempos de Ditadura Militar. Na época de sua ascensão, os jornais os nomeavam como “um grupo de jovens de esquerda que, mesmo pequeno, buscava alguma revolução”.

Os chamados por muitos como pequenos e ruidosos, com seus ideais bolchevistas e trotskistas, também eram tidos como internacionalistas, mesmo sendo um grupo revolucionário brasileiro, já que traziam consigo muitos aspectos da cultura inglesa, não apenas no ato direto de protestar — com marchas, cartazes, debates, provenientes do ativismo estadunidense e inglês —  mas até nos fatores muitas vezes ignorados ou subestimados em um movimento social, os quais também exercem uma certa influência, como a música e a cultura do entretenimento sonoro. 

O aspecto musical era mais do que presente na Libelu, era impregnado. A musicalidade britânica e rockeira durante as reuniões e  protestos era extremamente importante para eles, assumindo o papel de uma espécie de força motora, que os motivava a continuar na luta a favor da liberdade política em meio a tanto caos. Sobre isso, José Genulino Moura Ribeiro (codinome Pinho), um entre os diversos ex-membros do movimento, que aparecem no transcorrer do longa, pontua: 

“Nós éramos uma cambada de rockeiros. As nossas festas eram os Stones, com umas pitadas de Santana, porque tinha que ser músicas dançantes, né? A gente dançava muito cara, dançava muito!” 

Ao recordarmos de alguns dos discos dos Rolling Stones — discos estes que fogem do estilo farrista bastante presente na banda e assumem um viés mais político e ideológico — se torna claro como água o motivo desta forte conexão que os membros da comunidade Libelu sentiam pelas canções eletrizantes do grupo que é tido como o berço do Rock. Afinal de contas,  Street Fighting Man, a música que aborda as manifestações sociais na América do Norte e Europa e a violência do estado contra a população, é dos Rolling Stones. Então sim, ambos (tanto a banda britânica como o movimento brasileiro) tinham uma feição política imbuída em seu subconsciente e prezavam pela vida libertina e despreocupada.

No documentário, ainda sobre o valor da música entre os ‘Libelus’, Josimar Melo — outro ex-membro — critica a escolha musical brasileiríssima dos demais movimentos sociais da época e blasona o estilo rockeiro do movimento ao qual pertencia e que tanto ama:

Para muitos grupos, a música tinha que ser música popular brasileira, samba, pagode. Para eles não podia ser rock, porque eram as músicas que operários ingleses escutavam, na visão deles. A gente odiava a música ‘fácil’ de protestos, os clichês. Achávamos que ‘Caminhando e andando’, do André, era o lixo. Não achávamos que tinha valor como arte.”

Libelu, que será lançado nos cinemas em maio, foi muito bem recebido pelos críticos até o momento, vencendo na 25° edição do Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’  [25th Internacional Documentary Film Festival ‘It’s All True’]. O filme é dirigido por um dos diretores mais promissores estreantes da indústria cinematográfica nacional na contemporaneidade, Diógenes Muniz, o qual aborda a trama de uma maneira, no mínimo, singular. Além de trazer a música britânica e americana para o contexto revolucionário nacional, que por si só já é algo incomum, Muniz não conta o enredo pelo olhar de historiadores, estudiosos e professores da área, como comumentemente acontece, ele traz os próprios envolvidos no movimento — os membros da tendência Libelu — e faz deles protagonistas. Estes, por sua vez, nos inserem nesse contexto desafiador, que emana coragem e união, e nos prendem lá por 90 minutos, sem que percebamos. 

O longa acompanha o decorrer do processo de origem do movimento, nos informa como todos esses jovens se uniram por uma causa conjunta, como eles buscaram e conseguiram se infiltrar nas repressões e nos conta até mesmo algumas técnicas/estratégias que eles utilizavam, evitando que fossem pegos e, obviamente, presos pelos militares.

No transcorrer dos depoimentos, navegamos nas autivas memórias nem sempre tão precisas das fontes. Inclusive, é bastante interessante perceber como estes eram na época e como tais vivências os moldaram para o que são hoje. Entre as falas, algumas imagens das passeatas, dos protestos, das reuniões, do pátio da USP (universidade que originou o movimento), aparecem, concretizando alguns dos dizeres pronunciados pelos depoentes. Além disso, registros de textos e documentos antigos também marcam uma forte presença em ‘Libelu’, como a foto da charge na matéria do jornal IstoÉ, que intenta mostrar os falsos e superficiais passos “necessários” para se tornar um Libelu, desde o estilo do cabelo até dicas de leitura. 

Abaixo a ditadura: documentário resgata história da Libelu - Trip

E com isso, aviso: o sarcasmo é sempre presente no filme, com algumas gargalhadas aqui e ali — fator que funciona, ao dar um toque de leveza em um contexto tão sombrio e pesaroso. Os registros, em preto e branco e intercalados, são os responsáveis por nos situar no estilo épico e vintage. Diógenes os utiliza e, assim, nos embrenha em um mundo soturno e violento, onde a igualdade, justiça, ordem e progresso era tal como uma luz inalcançável e que ficava mais fraca a cada dia que se passava.

“Naquele momento você vivia a derrota da luta armada, você tinha várias pessoas presas, desaparecidas, mortas. O fator tragédia era muito presente na época.”

Mas não se engane, a esperança de uma mudança significativa permanece e marca todas as cenas.

“Entretanto, na política, em contrapartida, você tinha essa sensação de que algo estava acontecendo, algo positivo, uma mudança. Pelo menos, eu tive. Essa foi a melhor ‘escola de vida’ pela qual passei.” Paulo Moreira Leite – Ex-diretor da Época, atual colunista do Brasil 247.

Além de nos apresentar a execrável ditadura que reinava nos anos 60 e 70, por meio do documentário podemos também acompanhar um Brasil ainda mais racista do que o atual:

Não tinha preto nas universidades, não tinha. Na época, tinha uns 3 ou 4, compreende? Três ou quatro entre uma multidão de brancos, entre centenas de brancos!” 

Militantes negros na ditadura militar - #Qual Perfil?

Feminismo Negro no Brasil: história, pautas e conquistas. | Politize!

A fotografia, que tramita entre closes faciais e cortes amplos, mostrando parte dos bastidores, agrada bastante. As sonoras, que nos apresentam músicas da época e antigos áudios gravados — muito úteis para uma maior compreensão de todo o processo revolucionário — alça a qualidade do longa. No entanto, em um jardim nem tudo são flores e aqui há alguns espinhos encontrados. O final, por exemplo, é um tanto vago. Busca construir uma ponte entre o passado e o presente, mas nesta tentativa, falha feio. Dizeres incongruentes deixam o telespectador um tanto confuso, ao ponto de você se perguntar: Libelu cumpriu ou não com seu papel?

Segundo Josimar Mello, o movimento fez o possível e foi extremamente importante no alcance da  democracia:

“Parecia que a gente ia mudar o mundo, parecia. Mas a realidade costuma pregar essas peças, né? Ela não é como a gente quer. No entanto, o que seria da democracia sem todo esse pessoal? Onde quer que eles estejam agora, é um fato que eles, que nós, escancaramos um buraco enorme para que a democracia entrasse, isso é certo!”

Já Eduardo Gianetti pensa o oposto:

“A minha geração é derrotada. Eu considero que a minha geração perdeu totalmente a chance de mudar o Brasil.”

Uns concordam com Gianetti, outros com Mello, mas o fato incontestável é que Libelu marcou o setor político, universitário e social brasileiro, abrindo o livro para que as próximas gerações tivessem o direito de escrever sua própria história, com mais representatividade, multiplicidade, liberdade estudantil e consciência. Consciência de que quando a coisa não vai bem, é necessário usar o poder da voz e marchar rumo à mudanças, com um bom punhado de coragem.

1° passeata da Libelu, em 1977.

‘Liberdade e Luta’ foi a primeira tendência a decidir gritar  “Abaixo à ditadura” nas ruas, de forma clara e precisa, enquanto outros movimentos maquiavam o dizer, ao pronunciar “Liberdades Democráticas”. O auge da Libelu ocorreu entre os anos de 1975 (Greve da Eca) e 79 (Lei de Anistia), os quais marcaram a revigoração do movimento estudantil. Em 76 ocorrem as primeiras passeatas ainda dentro do campus, as quais migraram para a rua já no ano seguinte. A Libelu deixou de existir em 1982, com a saída de vários de seus membros, marcando assim 10 anos de existência.

 

Veja abaixo o trailer do documentário

O documentário está previsto para chegar aos cinemas em MAIO!

Por Jessica Blaine

Fala visitante do Hospício! deixe seu recado aê!