Loucos por Justiça | Mads Mikkelsen domina de novo as telas do cinema dinamarquês || Resenha
Há um limite quando o assunto é justiça? Para Markus, a resposta correta é “não”.
O vencedor do Oscar na categoria de “Melhor Curta-Metragem” na edição de 1998 por Election (Noite de Eleição), dá seu próximo grande salto rumo ao sucesso definitivo.
Apesar do título clichê, o aclamado roteirista e diretor Anders Thomas Jensen entrega aqui um produto extremamente original. O thriller não só é delirante, como também tensionado e absolutamente nivelado. A trama dinamarquesa acompanha o desenrolar da vida do soldado Markus Hansen, interpretado por Mads Mikkelsen (de “Druk: mais uma rodada“), após um trágico acidente, ou talvez nem seja tão “acidente” assim.
O ponto de partida é uma má-sucedida viagem de trem. A missão no deserto que Markus foi convocado à participar durará mais do que o esperado (o prazo da missão foi prorrogado por mais 3 meses). Devido a isso, o protagonista decide avisar sua esposa Emma (Anne Birgitte Lind), a qual não se agrada nem um pouco da notícia. Como reflexo de sua decepção perceptível, Emma desiste de seus planos e propõe à sua filha adolescente Mathilde (Andrea Heick Gadeberg) que falte à aula daquele dia e aproveite o momento em uma espécie de curtição despreocupada. Mathilde acaba por topar a ideia. Rumo à aventura, a dupla embarca em um trem lotado, onde Otto (Nikolaj Lie Kaas) cede seu assento a Emma. Infelizmente, minutos depois, o transporte é atingido na lateral, ocasionando a morte de 11 pessoas; Emma foi uma delas.
Acompanhamos aqui uma realidade infelizmente natural entre os que vivenciam a guerra na pele. Markus sofre de PTSD (Transtorno de Estresse Pós-Traumático), devido seus dias no exército, fator que expande ainda mais o drama da história. Após a tragédia, o protagonista é liberado da missão para que possa cuidar de sua filha. Entretanto, ele acaba por ser mais um fardo do que um auxílio; Mathilde muito se preocupa com a saúde mental de seu pai, o qual dispensa as ofertas de terapias e outros procedimentos médicos que se fazem mais do que necessários à ambos.
Encobrindo a dor do luto, pai e filha retomam a vida (ou pelo menos tentam), quando uma visita inesperada os surpreende. Vocês se lembram do Otto? Pois é, Otto é um cientista. Ele chega na casa de Markus, alegando que estava no trem na hora do acontecido e que possui provas concretas de que a tragédia não foi um acidente e sim um atentado, orquestrado por uma gangue criminosa intitulada “Riders of Justice” (inclusive, o filme recebeu este nome nos Estados Unidos), a qual — com este ato — tencionava matar uma importante testemunha que havia embarcado no mesmo trem.
Hansen escuta atentamente a tese reveladora do calculista Otto e de seus dois colegas — patetas, porém gênios (sim, tem como ser os dois) — Lennart (Lars Brygmann) e Emmenthaler (Nicolas Bro). Motivado a vingar a morte de sua esposa, o protagonista traça algumas táticas de ataque (característica típica de todo e qualquer soldado), visando eliminar (de uma vez por todas) os malfeitores.
Na outra extremidade da história, se encontra Mathilde. Ludibriada pelo próprio pai, a garota é levada a acreditar que os três (Otto, Lennart e Emmenthaler) não passam de terapeutas que procuram ajudar a família a superar o luto, o que cria toda uma camada humorística que encoberta um plano mortífero. Não há sequer uma gargalhada do telespectador que não tivesse sido minuciosamente calculada por Jensen; no entremeio de todo este cenário adulterado para uma maior segurança de Mathilde, o roteiro implanta alguns sinais não captados pelo trio que geram discórdias entre eles e Markus.
A comicidade presente não anestesia o drama e nem a comoção do enredo. É até mesmo intrigante acompanhar todos os sujeitos da história, com feridas não saradas, em busca de uma cura interior. Inclusive, a psicologia é uma aliada constante entre as numerosas cenas de ação. O ator que interpreta Otto até nomeou o gênero que a obra introduz: “É uma dramédia. Se precisasse classificar, diria uma ‘dramédia’”. Sobre isso, a atriz Andrea Heick (Mathilde) também se posiciona:
“Você não sabe se deveria
rir ou chorar e acho que
essa é a genialidade de Anders Thomas.”
Certíssima Andrea! Desde 98, Thomas Jensen se consagrou como diretor e (principalmente) roteirista, mas esse retorno de parceria entre Jensen e Mads (Jensen e Mads Mikkelsen trabalharam juntos pela primeira vez na comédia ‘Men & Chicken’, de 2015) alça novas dimensões; no exterior, o filme foi lançado no ano passado, atingindo a ilustre marca de 96% de aceitação da crítica especializada.
Essa transição dúbia entre comédia e drama é característica do humor sarcástico dinamarquês, mas ainda não foi tão explorado pelo cinema americano; talvez seja este o motivo de tamanho sucesso entre os telespectadores estadunidenses. Acredito que o mais admirável é como um gênero não camufla o outro. Como disse lá no início, é tudo muito nivelado.
“É um ato de equilíbrio.
Na verdade, tivemos que cortar
algumas piadas em ‘Loucos por Justiça’
para que os dois — o humor e o drama —
não se canibalizassem.” – Jensen
Em termos de química entre o cast, posso até dizer que poderia cortá-la com uma faca, de tão sólida. A relação paternal, aparentemente em destroços, de Markus e Mathilde, é uma entre as peças mais valiosas do longa. A atuação de Mads, surpreendendo o total de 0 pessoas, é simplesmente fenomenal. Ele traz ao seu personagem uma frieza compreensível, mas também exibe uma certa preocupação paterna, velada pela pele de soldado veterano que ele carrega. A caloura Heick, por sua vez, incorpora com esplendor a auto-culpa e raiva que sua personagem sente pela perda da mãe, somada à uma angústia que ela tenta esconder em um perfil, apesar de tudo, equilibrado. As incríveis performances, visíveis em cada interpretação presente aqui, é um reflexo do processo que antecedeu as gravações. Todos os cinco atores principais participaram e contribuíram significativamente na construção de seus personagens, desde o estilo do figurino até os pormenores da própria personalidade de cada um.
A filmografia é brincalhona, no sentido de explorar seus dois pólos: as cores frias e também as saturadas. Com a trama se desenrolando em um período natalino, vemos o mais puro caos em um pano de fundo harmonioso e, em certas cenas, iluminado. Em alguns momentos (superficialmente tão calmos) você realmente não consegue prevê o que ocorrerá dois segundos depois e o susto é mais do que inevitável.
Esta “dramédia”, como diria Nicolaj, traz em pauta o instinto vingativo, natural de todo e qualquer ser-humano que tem sua felicidade ameaçada por outro, mas não é sobre isso.
“Para mim, o filme não é
sobre vingança, é sobre tomar
uma ação [seja positiva ou negativa]
como uma forma de lidar com
a dor que você sente” – Heick
Lançado aqui no Brasil na última sexta, o longa está disponível para compra e aluguel nas plataformas Claro Now, Vivo Play, Sky Play, iTunes/Apple Tv, Google Play e YouTube Filmes.