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Como um dos escritores mais conhecidos do mundo deixou um legado para o Cinema Mundial e de Terror, mas teve suas obras literárias ofuscadas por suas adaptações.

Por Guilherme Sander 

*Alerta de Spoiler: o texto abaixo pode conter detalhes sobre filmes e livros do autor. 

É um eufemismo declarar que Stephen King é um dos maiores escritores da atualidade. Os números, de fato, são impressionantes. São mais de 60 romances; 200 contos e 400 milhões de exemplares vendidos e traduzidos em mais de 40 países.  Dezenas de suas obras foram adaptadas em formatos de Filme, Série, Minissérie para televisão e streaming e até mesmo em Quadrinhos.

Quando falamos seu nome, o gênero Horror é o que normalmente vem à cabeça. Obras como “Carrie: A Estranha”; “O Iluminado”; “It: A Coisa”, não são apenas obras literárias elogiadas e bem sucedidas como adaptações cinematográficas, mas também são referências do trabalho do autor na Literatura Mundial.

 


Algumas capas dos livros de Stephen King, publicados pela Editora Suma, no Brasil. Imagem: Editora Suma.

 

Entretanto, embora elogiadas por crítica e público, algumas tiveram pouco êxito comercial (películas como “Doutor Sono”, “O Nevoeiro”, e “O Aprendiz”). Outras, combinaram o fracasso tanto nos âmbitos comerciais, como de crítica (“A Torre Negra” e “O Apanhador de Sonhos”). Incontáveis obras ganharam um estigma de Terror Trash de qualidade duvidosa (como “A Maldição”, “Vôo Noturno”; “Fenda no Tempo”; “Sonâmbulos” e tantas outras). 

Mas como as suas adaptações estabeleceram seu legado na história do Cinema Mundial e não só do gênero de Horror e ofuscaram a complexidade de suas obras literárias?

Seu primeiro livro lançado foi também seu primeiro trabalho a ser adaptado para o Cinema. Em 1976, o filme “Carrie: A Estranha”, dirigido pelo aclamado diretor Brian de Palma, projetava uma iniciante Sissy Spacek  no papel-título da garota com poderes telecinéticos, que sofre Bullying na escola – 30 anos antes mesmo do tema passar a ser amplamente debatido em mídia e sociedade – e ao mesmo tempo em conflito com a opressão religiosa de sua mãe solteira. Não é uma relação familiar aleatória. King também foi criado por uma mãe solteira em uma época em que mulheres abandonadas pelos homens, eram cruelmente marginalizadas na sociedade. Será que é muito diferente do que acontece hoje em dia?

  Livros: Carrie, a Estranha - O romance de estreia de Stephen KingCrítica: Carrie, A Estranha (1976) | Cine Mundo
Sissy Spacek e Piper Laurie como mãe e filha em “Carrie: A Estranha”. Em seguida, Carrie e seu banho de sangue de porco em uma das  cenas mais emblemáticas do filme. Imagens: Divulgação.

 

É impossível não ter empatia por Carrie e acompanhar sua ingênua felicidade por, de repente, sentir-se parte de um mundo que sempre lhe virou as costas. O terror que ela prolifera contra todos, detratores ou não, impressiona menos do que o horror da cena inicial. Carrie tem sua primeira menstruação no vestiário feminino do colégio e desesperada, sem saber o que acontecia, tem absorventes atirados em si por suas colegas de classe em meio a zombaria e excitação. 
Crítica: Carrie, a Estranha (1976) - Sessão do MedoCarrie White em seu desespero, na cena inicial do filme “Carrie: A Estranha”. Imagem: Divulgação.

Embora use a Telecinesia (suposto fenômeno ou capacidade de uma pessoa movimentar, manipular ou exercer força sobre um corpo ou objeto, apenas usando a mente) como elemento para provocar o medo e construir o horror, King aprofunda temas que debatem características e condições humanas. Em determinada passagem do livro, ele reflete: “‘Desculpas´ é o remédio para as emoções humanas. Arrependimento sincero é tão raro quanto o verdadeiro amor.” E não é que faz sentido?

Além disso, ele cria uma experiência sensorial. A narrativa de Carrie White é intercalada com diversos artigos científicos e jornalísticos sobre o fenômeno da Telecinesia e depoimentos “oficiais” dos personagens, sobre o que acontecera na cidade de Chamberlain, na fatídica noite em que Carrie tomava um banho de sangue de porco, em seu baile de formatura. Tudo criado por King, é claro, mas para quem lê, parece que a história é verdadeira e o autor aproveita para dar embasamento na ciência aos fenômenos paranormais vivenciados pelos personagens. Ele alia os elementos narrativos que oferecem um senso de veracidade, a um arquétipo de estudante que existe em pelo menos um aluno em cada colégio ao redor do mundo. É difícil não se identificar com a história e então, refletir sobre a mesma.

Certamente, outra de suas obras mais famosas, “O Iluminado”, foi adaptado por ninguém menos que Stanley Kubrick, cujo trabalho possui uma legião de admiradores. Mas King não poupa críticas ao filme.

Série iluminada - ISTOÉ IndependenteKing and Kubrick: Adapting The Shining
O menino Danny Torrance e as gêmeas fantasmas em uma das cenas mais icônicas da História do Cinema. Imagem: Divulgação.

É inegável que como filme é brilhantemente dirigido com seu elenco estelar, incluindo Jack Nicholson no papel de Jack Torrance.  A Direção de Arte é detalhadamente rica; Trilha Sonora marcante e a Decupagem exalta o tamanho da locação em contraste com o isolamento dos personagens. Porém, ao compararmos roteiro de Filme e o conteúdo do Romance, fica difícil não concordar com o autor. 

Como um Ensaio sobre seu próprio alcoolismo na época em que o escreveu, King usou o seu isolamento no vício; seus tormentos pessoais e psicológicos; a delicada relação familiar dentro desse cenário, para refletir a loucura do personagem de Jack Torrance. Essas emoções densas e relações familiares intrínsecas, foram substituídas pelo simplismo de uma história de um Hotel assombrado; uma criança que via fantasmas e um personagem que perde a sanidade de forma unilateral devido as assombrações do lugar. Os fantasmas deixam de ser alegorias dos tormentos de Jack e se tornam os catalizadores de suas ações.

Artigo | 'O Iluminado': o clássico de Stanley Kubrick por uma via psicológicaJack Nicholson e Shelley Duval em performances excepcionais em “O Iluminado”, de Stanley Kubrick. Imagem: Divulgação.

Por isso, não é incomum o elemento terror dos filmes se sobressaírem a suas reflexões sobre as condições humanas dentro do cenário proposto em seus Romances. Em “O Cemitério” (que originou o filme “Cemitério Maldito”), King escreve: “A ira é o território preferido dos loucos, que acreditam que uma mente possa conhecer outra”, ao tratar da convivência e discordâncias do casal Louis e Rachel diante do dilema da morte. O livro em si é uma reflexão elaborada sobre o tema, cuja discussão é eclipsada pelos elementos de terror do filme.

Embora sejam obras tipicamente de Suspense e Horror, muitos de seus Romances e Adaptações permeiam por outros gêneros e são pouco conhecidos do grande público como uma de suas Histórias.

Filmes como “Conta Comigo” (clássico reprisado incansavelmente na Sessão da Tarde); “Um Sonho de Liberdade” e “A Espera de um Milagre” (ambos roteirizados e dirigidos por Frank Darabont – sim, o mesmo criador da série The Walking Dead);  são filmes majoritariamente dramáticos, embora alguns deles possuam aspectos sobrenaturais. Em suma, são filmes amplamente respeitados por crítica e público.

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“Conta Comigo”, dirigido por Rob Reinner Imagens: Divulgação.

“Conta Comigo”, dirigido por Rob Reinner (que viria a dirigir também “Louca Obsessão”, adaptação do livro “Misery”) é um conto sobre melhores amigos durante a infância, crescimento e o primeiro contato do ser humano, mais uma vez, com algo tão enigmático como a morte. Um dos elementos recorrentes de King, mais uma vez, se faz presente: um personagem Escritor, algo que encontramos também em “It: A Coisa”; “1408”; o próprio “Louca Obsessão” e “O Iluminado”, assim como tantos outros.

King sempre traz suas experiências e vivências pessoais para suas histórias. Como diz um personagem de “It: A Coisa” sobre Bill Gaguinho, um futuro Escritor: “Bill sabe contar histórias porque ele sabe enxerga-las”. É como King descreve seu próprio ofício, ao dizer que enxerga histórias no mundo real e as transporta para a ficção propondo reflexões sobre esse mundo.

Louca Obsessão | AXN Brasil
Un remake modernisé de "Misery" serait en développement - Stephen King France
 Kathy Bates, premiada com o Oscar pelo papel de Annie Wilkes no filme “Louca Obsessão”, de Rob Reinner. Imagens: Divulgação.
Em “Um Sonho de Liberdade” (The Shawshank Redemption, no original), por exemplo, é apresentada pela primeira vez nos cinemas, a Prisão Shawshank, que seria ao menos citada em praticamente todas as suas histórias. Isso acontece porque King criou um universo compartilhado. Suas histórias coexistem no mesmo universo.
A Prisão Shawshank, mais uma vez, é para onde todos os seus personagens são enviados, cujo destino é o cárcere. O estado norte-americano do Maine, onde King nasceu e é residente até hoje, é onde a maior parte de suas histórias acontecem. Nesse estado, ele criou Derry, uma pequena cidade fictícia, onde se passa “It: A Coisa”, e é lar do famigerado personagem Pennywise, o palhaço devorador de crianças. Também, é onde é ambientado “O Apanhador de Sonhos”.
Os Condenados de Shawshank” vai dar na televisão portuguesa - NiT
Tim Robbins e Morgan Freeman em “Um Sonho de Liberdade”. Imagens: Divulgação.
Inclusive, em “O Apanhador de Sonhos”, sem dar muita atenção ao fato, King descreve que em um muro da cidade está escrito: “Pennywise lives” (Pennywise vive, em tradução), sinalizando que talvez, o personagem tenha sobrevivido ao final do livro, após o Clube dos Perdedores o terem supostamente derrotado. Há boatos de que King esteja escrevendo a sequência para “It: A Coisa”, 30 anos após a publicação do livro original, assim como fez com “Doutor Sono”, sequência de “O Iluminado”, em 2014. 

E nesse universo compartilhado, os Easter Eggs não param por aí. Em “O Cemitério”, o personagem de Judd cita um cão da raça São Bernardo, que contraiu raiva e manteve reféns mãe e filho em um carro por dias: ele está falando de Cujo, livro de mesmo nome que narra essa história. Annie Wilkes, ao manter o escritor Paul Sheldon em cativeiro em “Misery” (Louca Obsessão), menciona um pai de família que aceitou um emprego de zelador de um famoso hotel de veraneio e enlouqueceu com o isolamento, tentando assassinar a própria família durante o inverno no local: ela está falando de Jack Torrance de “O Iluminado”. Annie está comparando o isolamento de Jack ao seu, justificando sua loucura indiretamente.

The Cujo Remake's New Title Isn't Going To Sit Well With Some Fans - CINEMABLENDCujo, o cão raivoso da raça Sâo Bernardo que faz Mãe e Filho reféns em um carro, no filme de mesmo nome.  Imagem: Divulgação.

Citações menos evidentes também enriquecem o universo de King e podem passar despercebidas até por leitores mais ávidos. Chamberlain é a cidade destruída por Carrie no livro “Carrie: A Estranha”. Após a destruição, Teddy Duchamp, um dono de um estabelecimento comercial local, se muda para Castle Rock (outra cidade fictícia criada por King) onde abre uma nova loja. Esse será um dos cenários e importante catalizador da história de “Trocas Macabras”, outra obra de King. Teddy também é, na verdade, tio do amigo de Gordy Lachance, personagem do conto “O Corpo” do livro “As Quatro Estações”, que originou a adaptação “Conta Comigo”. 

A famosa Saga de 7 livros, vários Contos e Spin-offs “A Torre Negra”, que originou em uma adaptação fracassada que inviabilizou novos filmes e uma série de televisão, possui forte conexão com “A Dança da Morte” (The Stand), que está sendo adaptada, no momento, pela Startzplay. Por isso, é bom se atentar. Se você se importa em ter Spoilers de algumas de suas obras antes de lê-las, se informe sobre a ordem cronológica de seus livros ao invés de lê-los na ordem em que ele as escreveu e as publicou. Você pode descobrir o destino de alguns conflitos e personagens antes de ler suas respectivas histórias. 

   Por que A Torre Negra não deu certo? Stephen King explica com dois motivos - NerdBunker Alexander Skarsgård vem aí no novo trailer de minissérie The Stand baseada no livro A Dança da Morte | Arroba Nerd    O Pistoleiro, na adaptação de “A Torre Negra”. Ao lado, Whoopi Goldberg na nova adaptação de “A Dança da Morte”. Imagens: Divulgação.

 

Seu estilo de escrita é característico. King pode ser objetivo em livros como “A Garota que adorava Tom Gordom” (inédito no Brasil), mas é famoso pelo detalhamento de personagens, ambientes e acontecimentos que entrelaçam suas histórias. “It: A Coisa”, mais do que contar a história do Clube dos Perdedores em seu embate contra a criatura Pennywise, é um Dossiê sobre a cidade de Derry e seus habitantes, com vários capítulos reservados para contar fatos históricos e contextualizar o leitor. 

It: A Coisa - Diário RadioativoO famigerado Palhaço devorador de crianças, Pennywise, no filme “It: A Coisa” (2017). Imagem: Divulgação.

A complexidade com que constrói suas histórias e personagens; à medida que o conjunto de sua obra ganhou notoriedade e importância na Literatura e Cinema Mundiais, fez-se injusto com que King seja conhecido apenas pela repercussão e desempenho de suas adaptações cinematográficas. Tanto quanto é redutivo dizer que ele seja um escritor de gênero, tal como o Terror, sinalizando a limitação com que o público pode perceber seu trabalho.

A obra de King, em suma, é sobre o Ser Humano e suas elaboradas reações diante de situações extremas, sejam elas dramáticas, tenebrosas, cotidianas ou até mesmo engraçadas. São situações que você poderia se pegar pensando: e se acontecesse comigo? O que eu faria?

Jump Scares in The Mist (2007) – Where's The Jump?Thomas Jane e elenco na adaptação do Conto “O Nevoeiro”, dirigido por Frank Darabont. Imagem: Divulgação.

Fica aqui um convite a você, que chegou até o fim desta Coluna, escolher uma de suas obras literárias e se deliciar com suas reflexões. Intocável é garantido que você não vai ficar. No Brasil, o autor é publicado pela Editora Suma e tem até edições em Capa Dura, para quem gosta de colecionar. 

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Guilherme Sander é formado em Design Gráfico pela Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais. Estudou Cinema e Vídeo e trabalhou 10 anos no Audiovisual entre Curtas-metragens; Videoarte; Projetos Experimentais e Televisão. Também estudou Comunicação Visual e Fotografia na Bowling Green State University, em Ohio, EUA. É leitor voraz de Stephen King e assiste filmes de terror praticamente desde que nasceu. Cresceu se identificando com a personagem de “Carrie: A Estranha”, mas infelizmente, menos com seus poderes Telecinéticos. 

1 thought on “O Legado de Stephen King – O mestre!

  1. Confesso que com base na leitura dessa crítica sobre os filmes do Stephen King, deu muita vontade de assistir novamente cada um dos filmes, pois sempre há um detalhe que deixamos de perceber. Parabéns ao colunista Guilherme Sander pelo bom texto a respeito de cada filme, com certeza ele é um fã e especialista do Stephen King.

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