‘Do Outro Lado da Lei’| Indie dramatúrgico de Pablo Trapero chega ao catálogo de streaming do Belas Artes à La Carte
Aì sim!
Pablo Trapero é considerado um dos maiores gênios da história cinematográfica latino-americana e não precisou despender de muito tempo para exibir seu brilhantismo. Em 1999, aos seus 28 anos, o argentino se aventurou ousadamente, dirigindo seu primeiro longa, o drama indie Mundo Grúa. O filme foi o responsável por mostrar sua competência e singularidade já de início, sensibilizando até mesmo a crítica do Festival de Cinema de Veneza e saindo premiado da cerimônia.
A primeira aposta de Trapero no big screen fez muito sucesso, mas nenhum artista apaixonado por criar se contenta com uma obra prima eremítica. Pablo estava pronto para desbravar ainda mais este mundo novo em que adentrara, é aí que surge seu segundo filme independente (em 2002) e óbvio que seria mais um drama pra lá de lírico, o filme “El Bonaerense” (título dado como referência à polícia argentina) ou, como intitulado aqui no Brasil, “Do Outro Lado da Lei”.
Em Do Outro Lado da Lei acompanhamos a morosa trajetória do chaveiro interiorano, simplório e largado, Zapa (interpretado prodigiosamente pelo ator argentino Jorge Román, de Killing the Dead e La León). Na trama, vemos o protagonista tentando se reerguer após se envolver em um golpe a mando de seu chefe, o qual encomenda uma abertura de cofre e pede para que Zapa realize o serviço. Zapa, por sua vez, obedece a ordem de seu superior sem saber que tal “serviço” é, na realidade, uma parceria criminosa entre seu chefe e uma dupla de mafiosos. Em meio a esta situação nada favorável, o personagem é convencido pelo seu tio Ismael a fugir de sua cidade natal para Buenos Aires, onde ele recebe a oportunidade de se tornar policial no subúrbio da capital argentina. De envolvido em um crime a policial — já por este primeiro fator podemos sentir a ponta de todo o iceberg da reviravolta que as penosas vivências de Zapa nos trazem e a desordem do sistema policial argentino em que ele acabara de entrar.
Trapero constrói no longa um ambiente regado por cinismo e ignobilidades, onde a estultice e uma certa inocência do personagem principal, evidente em sua face um tanto aérea, reina em cada cena. Zapa é aquele típico policial desastrado, o zoado pelos outros agentes, o rejeitado ou menosprezado em certas missões. No início do enredo, com o seu corpo mole e sua timidez, o personagem nos convence de que não leva e de que nunca levará jeito para a coisa, mas há algo nele que, com o tempo, o torna um destaque perante os demais agentes da instituição: Zapa é submisso e perceptivo, ele cumpri as ordens recebidas com exatidão (ele obedece mesmo quando não quer e sem concordar) e se torna um dos “queridinhos” do comissário Gallo (interpretado por Darío Levy), por ser facilmente manipulado. Desse modo, Zapa passa por algumas promoções que, de certa forma, muito o beneficiam, mas que também — em contrapartida — o cravam em um universo banhado à propina e corrupção.
Ao desenrolar do plot, vemos Zapa passar por diversos treinamentos e aulas que objetivam acelerar o processo de formação policial dos recém escalados, um procedimento que se apresenta de maneira bastante cirúrgica, mas não o suficiente — o que os aguarda do lado de fora do muro é muito mais intenso e cruel do que imaginam.
A qualidade fotográfica do longa é um tanto heterogênea. Em algumas cenas, as técnicas de iluminação ou de enquadramento não são umas das mais apreciadas, enquanto em outros momentos essas escolhas são de tirar o fôlego. A fotografia daqui é típica da época e segue, em sua maioria, de modo escuro e intimista, mas não se engane, isso não foi adaptado despropositalmente, o filme é alicerçado no desconforto, ele gera isso em quem o assiste e de forma instantânea. As cenas se inserem quase como uma tour nas periferias da grande Buenos Aires. Por meio delas, vemos um lado não tão mostrado da cidade; sua face hedionda, violenta e desarranjada. A arquitetura ostentosa e iluminada — cenário que tanto nos remete à esta célebre capital argentina — assume um breu em meio a casas de madeira com cores desbotadas. Neste drama independente, Pablo foge da abordagem tradicionalista de Aires e exibe seu antagonismo de classes e contextos, fatores que se fazem mais do que presentes em toda e qualquer cidade (seja ela minúscula ou estratosférica), inclusive na minha e certamente na sua.
Vemos aqui prosas racistas que são traduzidas pelos agentes como simples piadas, o uso incontrolável de armas de fogo e a violência desmedida dos policiais, englobado em um pacote de outras incontáveis atitudes antiéticas que corrompem o próprio desígnio do que é ser um policial. Em vez de garantir a segurança do povo, eles alastram ainda mais o pavor, em um contexto que (infelizmente) reflete a vida real, não apenas dos argentinos periféricos, mas de toda e qualquer minoria existente neste planeta.
A dolorosa — porém necessária — verdade que encaramos neste drama argentino é que sempre há um lado na balança que pende mais, que é confortável de se retratar, a mísera parte urbana que costuma ser mais aceita e apreciada pelo público; talvez seja isso que faz de Trapero um nome notável. Com uma abordagem diferenciada e realista, Pablo não acoberta o lado cítrico e desafiador de sua nação, ele não faz um retrato de pura perfeição de seus personagens, ele mostra os pecados capitais deles, exibe audaciosamente o lado repulsivo de seu país natal, o outro lado da lei.
Completando quase 20 anos desde seu lançamento, o longa finalmente chega ao serviço de streaming brasileiro independente do cinema Petra Belas Artes. Este que sempre foi muito frequentado por paulistanos cinéfilos apaixonados por indies tem se modificado e inovado nos últimos 3 anos, principalmente com o período pandêmico e quarentenado em que vivemos, em decorrência da Covid-19. Agora seu catálogo pode ser apreciado por qualquer pessoa e em qualquer lugar (com internet, é claro).
De início, seu acervo de filmes estava hospedado na plataforma Looke, mas então a instituição viu no universo digital uma oportunidade de crescer ainda mais com o seu próprio serviço de streaming, um projeto que não demorou muito para sair do papel e já começou com uma ação muito valiosa. Em abril de 2020, a já lançada plataforma Belas Artes À La Carte ofereceu ingressos gratuitos, com o intuito de gerar entretenimento para uma população que agora clamava por uma distração em um contexto pandêmico, não podendo nem mesmo ir ao cinema. Desde então, seu crescimento tem se tornado ainda mais gigantesco do que era no presencial. Em 26 de janeiro deste ano (2021), a transmissão anual do My French Film Festival, que foi sediada no streaming do Belas Artes, atingiu 30 mil visualizações.