Zona de Confronto | Cruelmente honesto || Resenha
Thriller aborda a noção selvagem “é matar pra não morrer” na brutal e preconceituosa polícia européia.
Minha última crítica ao Hospício foi sobre um longa dinamarquês e aqui estou de novo, falando sobre outro thriller indie produzido na Dinamarca e que, ainda mais do que o anterior, excede padrões.
Shorta (como os árabes chamam a polícia) é seu nome de origem; a obra dinamarquesa exibida no Festival de Cinema de Veneza, e que chegou ao Brasil no último dia 27 (sexta-feira) com o título “Zona de Confronto”, discorre uma temática infelizmente habitual, mas em uma narrativa muito própria, crua, inusitada e intensamente comovente; não marejar os olhos é um grande desafio aqui.
Regado a sangue, o ‘campo’ da letalidade policial abriga milhares de vítimas no mundo inteiro. No ano passado, o número de mortes pela polícia do nosso país atingiu uma taxa nunca antes vista. Segundo o registro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, somaram-se 6.416 mortos. O pior é saber que uma parcela considerável desta taxa recorde são de vidas inocentes.
“Não consigo respirar” é a primeira fala do filme, pronunciada por um homem negro de aproximadamente 30 anos, que mais tarde conhecemos como Talib Ben Hassi, mas que associamos instantaneamente ao caso George Floyd. Igual à Floyd, Talib é detido e estrangulado por policiais, em um edifício aparentemente abandonado, o que resulta em sua morte e em uma caótica camada de protestos violentos que ocasionam ainda mais mortes e caos na capital dinamarquesa, Copenhague. Só que dessa vez, quem se encontra em menor número são os policiais, onde o “predador” se torna a “presa”.
O novo projeto de Anders Ølholm e Frederik Louis Hviid (vencedor do Festival de Cannes de 2017 na categoria “Young Directors Award”) é perigosamente ousado; uma peça fora do lugar poderia resultar em uma catástrofe narrativa.
Fazer um thriller sobre brutalidade policial que tem como protagonistas os próprios policiais pode ser uma escolha fadada ao fracasso. Muitos telespectadores poderiam interpretá-lo como um modo forçado de gerar uma noção vitimizada sobre policiais assassinos, mas este, por sorte, não é o caso que acompanhamos em “Zona de Confronto”.
Talvez você tenha se perguntado o porquê do título original ser em árabe; já que a produção é da Dinamarca. A resposta a esta questão é logo nos dada aos primeiros minutos do desenrolar da trama. A operação policial, que encabeça o thriller e que resulta na morte de Talib, acontece em um bairro de imigrantes árabes da cidade. Devido os protestos violentos — reflexo da indignação da comunidade — a polícia aumenta o número de viaturas nas ruas, objetivando restaurar a ordem social e evitar uma possível insurreição na capital; a partir desta iniciativa, o confronto entre policiais e manifestantes se alastra.
Os policiais Jens (Simons Sears) e Mike (Jacob Hauberg Lohmann) são escalados para patrulhar juntos o bairro marginalizado. Em antecipação, ouvimos certos fuxicos, de colegas de Jens, sobre a personalidade nada fácil de Mike, que é nos apresentada mais cavadamente nas cenas de rua. Mike é agressivo, impiedoso e nem tenta esconder seu racismo. Na cena em que ele desrespeita rudemente a privacidade do garoto arábico Amos Al-Shami (Tarek Zayat) e o provoca, é criado em quem assiste uma forte revolta e desprezo pelo personagem.
Em contrapartida, Jens nos conquista; ele é um policial bastante fleumático, altruísta e atura várias sandices de seu companheiro de ronda. Nas cenas em que Jens se esforça para manter-se calado acerca das atitudes repugnantes de Mike, chegando a até mesmo endurecer seu maxilar de tanta raiva, é comum que o telespectador quase implore (frente à tela) para que ele reaja.
Em um ambiente extremamente insalubre, Amos e os dois vigilantes são encurralados por uma série de manifestantes munidos com armas de fogo e que estão mais do que dispostos em vingar a morte de Talib, o que inicia uma sequência ininterrupta da mais elevada e cítrica ação em uma constante busca por sobrevivência que remolda suas perspectivas sobre a forma como a polícia lida com a comunidade.
O roteiro calibrado desta obra se responsabiliza em construir e desconstruir sentimentos, principalmente acerca do modo como interpretamos Mike. Na segunda metade do longa, acompanhamos uma parcela de redenção em sua trajetória, incorporada por Lohmann em um formato bastante tensionado e honesto, digno de Oscar. Mas não se engane, em nenhum momento os diretores tentam encobrir os pecados capitais de Mike e o colocar em uma falsa perspectiva heróica; na verdade, o enredo expõe os delitos do personagem e o força a encará-los. Mike tentava se convencer de que as pessoas que ele torturava, ou até mesmo matava, era para evitar sua própria morte, aquela já enfadonha e mentirosa desculpa esfarrapada de “legítima defesa”; em sua mente, era uma questão de matar para não morrer, ele até mesmo usa isso como justificativa ao argumentar com Jens. Entretanto, seu contato inesperado com a mãe de Amos o muda radicalmente. Mike começa a perceber que não há justificativas aceitáveis quando o assunto é violência e assassinatos de pessoas inocentes.
“Minha mãe dizia que ser mãe é como ter o coração desprotegido andando pelo mundo […] Amos é muito bom, mas às vezes ele tem súbitos de revolta. Se você passa a vida sendo tratado como algo que não é, você acaba acreditando, sabe?”
A revista americana Variety traduz a perspectiva dos policiais sobre os garotos da periferia como “um respeito raro e uma suspeita frequente”, em uma concepção estereotipada e racista do crime e marginalização. O próprio Jens, anteriormente tão apaziguador, acaba cometendo uma ação reativa violenta no final do longa. Naquela extensa noite de patrulha, Jens vivencia experiências inéditas em sua vida, as quais o colocam em perigo de morte à todo momento: um membro de uma gangue dá tiros distantes em sua direção, o ameaça com a arma encostada em sua cabeça e quase o mata; se não fosse por Amos, ele com certeza morreria. Isso o faz perder a confiança nos garotos da comunidade, restando apenas a suspeita e o medo que o induzem a disparar a bala sem nem mesmo olhar à quem.
Os co-diretores evitam, ao máximo, que o telespectador se desligue da ação de “Zona de Confronto”; cenas de tiroteios são seguidas por outras que conduzem um novo ciclo de fuga bem coreografado em uma filmografia que segue uma paleta majoritariamente saturada e bela, utilizando movimentos de câmera mais que apreciáveis para um filme independente.
O grande dilema que encaramos aqui, mas que (infelizmente) não é ficcional, é a ideia implantada da brutalidade como uma solução. De um lado, a violência é estrutural e sistemática, sendo a grande causadora da desordem mórbida implantada na comunidade; enquanto do outro extremo, a brutalidade é utilizada como um péssimo meio de vingar as vítimas da violência policial e buscar a justiça que não lhes foi garantida de outra forma. Tudo não passa de um efeito dominó sem fim, onde violência gera mais violência; tiroteios geram mais tiroteios; mortes geram mais mortes, até atingir um nível irreparável.
Um aviso: não assista com a expectativa de que no final tudo se endireitará e que os policiais se converterão por completo de suas ações criminosas; afinal, isso seria uma hipocrisia gigantesca, que não reflete a realidade que presenciamos nos telejornais do último ano; quem entra no ciclo de selvageria, se prende à ele. Ølholm e Hviid acertam e retratam todas as faces desta lamentável realidade em uma honestidade surpreendentemente crua, abominável e emocionante.
“Não briguem por causa do Talib. O Talib não era violento. Ele era um menino doce e feliz, ele era um bom irmão e filho, e agora nunca mais o verei. Não briguem em nome dele; não quero que mais pais percam os filhos”
Zona de Confronto foi lançado aqui no Brasil na última sexta-feira, exclusivamente no streaming. O filme está disponível para compra e aluguel na Claro Now, Vivo Play, SkyPlay, iTunes/Apple Tv, Google Play e YouTube Filmes.