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O novo drama dos irmãos Russo nos apresenta performances imersivas, transições ousadas de edição e um Tom Holland irreconhecível

A renomada revista norte-americana, The Hollywood Reporter, sediou um screening (exibição antecipada e privada) do drama Cherry, novo filme dos Irmãos Russo, no dia 18 deste mês, juntamente com um Q&A (perguntas e respostas) com o elenco e diretores do filme. Eu fui convidada a acompanhar o evento virtual e aqui falo um pouco dos pontos positivos e negativos da obra que está gerando um Oscar buzz bastante expressivo

Roupas largas, olheiras, marcas circulares e avermelhadas nas bochechas, boné azul e um cachecol ‘bate não quara’, que vira a marca registrada do protagonista no filme – esta é uma visão deprimente de um jovem que sai de uma simples casa de esquina, ofegante e aparentemente desesperado, ao encontro da camêra, quebrando assim a ‘quarta parede’. Dessa forma, os irmãos Russo nos apresentam Cherry, o protagonista do novo drama da AppleTV Plus, interpretado por Tom Holland, que tem gerado burburinhos entre os críticos do cinema com sua performance sólida, imersiva e cheia de nuanças.  

A parceria entre os Russo e Holland não veio de hoje, a primeira vez em que eles se reuniram em um projeto foi em Capitão América: Guerra Civil (filme lançado em 2016), onde Tom estreou como a nova versão do amigo da vizinhança, sendo o primeiro Spider-Man no Universo Cinematográfico da Marvel (MCU). Desde então, muitos projetos ‘heróicos’ vieram, tais como Avengers: Guerra Infinita e Avengers Endgame. Segundo Joe Russo, eles possuem quase uma década de convivência, que proporcionou uma amizade valiosa entre a dupla de diretores e o ator. Foi exatamente este relacionamento estreito e amigável que os juntaram na telona novamente, só que dessa vez não em uma adaptação de uma HQ heróica, mas sim na adaptação do livro de Nico Walker, uma ficção realista, baseada na própria experiência de vida do autor e que recebe como título o codinome do protagonista da trama – Cherry.

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AGBO

O livro Cherry, conta a história de um ex-médico do exército, que sofre de transtorno pós-traumático (PTSD) após retornar da guerra do Iraque. Na tentativa de controlar a doença, Cherry se torna viciado em opióides e heroína e, para bancar o vício, começa a assaltar bancos. É o famoso “efeito dominó”, uma coisa leva a outra. A  crise de opióides foi alarmante nos Estados Unidos no final do século passado e no início deste. Segundo o The Washington Post, mais de 100 bilhões de pílulas de opióides foram distribuídas entre os anos de 2006 a 2014 no país. Para Joe, este é um dilema que sempre esteve próximo de sua realidade e a de seu irmão, Anthony Russo, sendo que a cidade natal deles, que também é onde a história se passa (Cleveland)  é uma das mais afetadas pela crise. Sobre a escolha deste tema e da obra literária da qual o filme se baseou, ele se pronuncia em entrevista ao Entertainment Weekly: 

“Tendo crescido em Cleveland, entendemos a crise existencial que o meio-oeste industrial vem experimentando há anos, que de várias maneiras o transformou no marco zero para a epidemia de opioides. [Tivemos] muitos amigos e familiares sofrendo nas mãos desta crise. Era uma questão muito pessoal, é muito importante para examinarmos. O livro encapsulou a voz por trás dele de uma forma que não tínhamos visto antes.”

A adaptação cinematográfica conta com alguns aspectos conceituais um tanto inovadores e isto foi um divisor de águas entre as primeiras críticas lançadas. Enquanto alguns nomeiam a escolha dos diretores como “ousada e criativa”, outros se posicionam de maneira afrontante, dizendo que tais escolhas tornaram o filme “uma bagunça de ideias”. Os posicionamentos antagônicos dos críticos se dão ao modo como o filme se desenvolve, em capítulos. Ao todo são seis capítulos que delineiam as transformações do personagem principal e de sua “companheira no crime” (literalmente), Emily, interpretada por Ciara Bravo. Essa metamorfose, de capítulo em capítulo, é gritante no protagonista, desde seu modo de andar, o tom da voz, suas expressões faciais e sua inocência que se desmancha conforme o tempo passa e os traumas o atingem. No entanto, essas transições não param na atuação, elas vão além, se apresentam nas caracterizações de cores, filtros, ângulos da câmera e até na proporção da tela, que vai desde “janela clássica” à “janela panorâmica”. No entanto, com todo este compilado de fatores existentes no filme (uns que agradam, outros que decepcionam), tem algo que não é mal visto por nenhum crítico até o momento: o desempenho dos intérpretes do casal. Para a Variety, a performance de Tom Holland em Cherry o alavanca para um Oscar em um futuro muito próximo.

“Holland, que surgiu em cena com “O Impossível” de JA Bayona em 2012, sempre foi um ator competente, que traz emoção para o futuro do cinema (e agora) assume seu papel mais sério em ‘Cherry’. O ator de 24 anos pode ser considerado jovem demais para uma peça de melhor ator, mas isso estabelece as bases para uma indicação em um futuro próximo. O tempo de Holland com a Academia pode estar próximo.”

Sobre o desempenho de Ciara, a co-estrela de Tom Holland neste drama, eles complementam:

“Bravo se consolida como uma estreante notável, a quem devemos continuar buscando em projetos futuros.”

A idade do astro realmente esbarra nas regras e preferências de nomeações da Academia e de outros tantos prêmios. Oscar, Golden Globes, Emmy – todos eles tendem a nomear atores com mais de trinta anos. Casos como a nomeação de Timothée Chalamet para a categoria de melhor ator no Oscar de 2018 pela sua performance em “Call me by Your Name”, tendo apenas 22, é considerado quase como um milagre. 

Com tudo, Tom não deixa a desejar neste papel. O ator se desintegra no personagem, assumindo as nuanças de um jovem problemático e inconsciente, e fornece um retrato estonteante e, em partes, vertiginoso. Não peco em afirmar que este foi seu papel mais desafiador até o  momento de sua ainda curta carreira. 

Cherry: Tom Holland

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Aqui, o ator  irradia um talento que tende a ser escasso em atores de 24. Ao assistir a trama, o público verá a imagem de Holland se desvincular do inocente escalador de paredes Peter Parker ou de quaisquer personagens anteriores que ele já possa ter interpretado. Para aqueles que se surpreenderam com a atuação do astro no drama da Netflix (The Devil All The Time), digo que o que ele faz aqui não é nem comparável, é definitivamente um outro nível de sua carreira que está apenas começando. Como a própria atriz Zendaya, a MJ de Spider-Man e co-estrela de Holland, disse à revista Esquire sobre o desempenho de seu amigo em Cherry e o que o aguarda em sua carreira: “O céu é o limite para ele.”

A espinha dorsal deste drama é o romance intenso entre Emily e Cherry. Segundo Bravo, o amor dos dois personagens é o que monta e conecta toda a trama.

“Sem o relacionamento no filme, tudo se despedaça para ele. Sabíamos que precisávamos fazer com que a presença dela e seu personagem brilhassem nos momentos em que ele a tinha de verdade.”

E isto ela fez com muito sucesso. Ciara Bravo domina as cenas mais angustiantes do relacionamento conturbado entre os dois protagonistas. Com gritos de desespero e choros bastante realistas, ela nos apresenta uma jovem que chega até o fundo do poço por puro amor, se envolvendo em esquemas de roubos a bancos e acompanhando seu namorado, e mais tarde esposo, em suas “aventuras” narcóticas. A química dos dois atores (Holland e Ciara) é singular, tão forte que se mantém até nas brigas e gritarias do jovem e tóxico casal. O relacionamento de Cherry e Emily no filme foi adaptado, tirando do script alguns aspectos abusivos e muito presentes na relação entre eles apresentada no livro, o que, em minha perspectiva, foi uma excelente escolha de abordagem. 

Cherry: Tom Holland, Ciara BravoAGBO

O novo drama cinematográfico da AppleTV nos retrata uma perspectiva um pouco menos doentia do casal, o que não significa que entre eles ainda não haja momentos que apresentam a toxidade que paira entre os dois até o quarto capítulo. Mesmo apreciando esta escolha, há um ponto no roteiro de Angela Russo-Otstot e Jessica Goldberg que definitivamente não me agradou. O desenvolvimento da história ao decorrer do primeiro capítulo se dá de uma maneira um tanto desgastante, como uma tartaruga caminhando rumo ao mar, sem nunca chegar lá. Mas então, quando você está prestes a desistir, é lhe apresentado o segundo capítulo, onde a trama progride consideravelmente e convida o telespectador a se envolver na história, apresentando o lado escuro que começa a emergir de Cherry e intensificando o ritmo da obra. Por isso, meu conselho a você é: tenha paciência, porque a parte enérgica e côncava há de chegar.

A fotografia do filme teve seus prós e contras. Nas cenas do alto, com a câmera sobrevoando a cidade, e nas características embaçantes e curvilíneas, que forneciam uma visão tortuosa dos momentos em que os personagens se drogam, fiquei satisfeita com o resultado. Nos movimentos lineares da câmera, que mostram mudanças temporais e de cenário em poucos segundos, senti como se estivesse contemplando uma jóia não muito vista no cinema atual. A quebra da ‘quarta parede’ foi um ponto positivo na interação protagonista/telespectadores, mas, por outro lado, me senti incomodada quando a câmera deixava o personagem ‘central’ (de determinada cena) em um ângulo lateral, como se o-encurralando. Em alguns momentos, esta escolha teve um bom retorno, mas na maioria cansava o olhar. Quando assistimos a um filme não queremos ficar uma cena inteira olhando para o canto da tela do notebook. Contudo e felizmente, essa característica fotográfica não permanece durante muito tempo, só é presente nos primeiros capítulos.

A pós-edição de cor agradou em sua maioria, como nas cenas diurnas e ao ar livre, em que a coloração da cidade, com a luz do sol, deixou a história um pouco mais leve, menos ‘dark’. Mas, em contrapartida, há escolhas que deixam a desejar. O uso de filtros vermelhos, por exemplo, entre um capítulo e outro, foi extravagante ao excesso.

A trilha sonora, composta por canções leves e nostálgicas, com violinos e pianos ao fundo, mas também com rocks e instrumentais pesados, induzem o telespectador a navegar entre os inúmeros e antagônicos sentimentos do personagem principal. O drama alcança o ápice sonoro na última cena do penúltimo capítulo, quando toca uma música estilo ópera, que inicia bem suave, enquanto a câmera se aproxima do personagem e seu olhar turvo, decorrente de seu ato. E então, de forma repentina, a cantora traz o sentimento de angústia e desespero no elevar de sua voz aguda, antes de a cena ser cortada e iniciar o sexto e último capítulo.

A soundtrack do filme, por Henry Jackman, é perfeita e nos guia na trajetória de Cherry. No entanto, em algumas cenas, a sonora é tão presente que acaba abafando a voz de alguns personagens, pelo menos no áudio original.

O drama possui falhas significativas, mas as performances que o filme entrega são tão fortes e hipnotizantes que, até no ponto mais fraco e inerte, o desempenho dos protagonistas impera e continua sendo seu encanto e salvação.

Cherry chega ao Brasil em 12 de março, na plataforma de streaming Apple TV Plus Brasil. A classificação indicativa do drama é de 18 anos. 

Aconselho você a assistir o filme apenas se estiver em bom estado mental e emocional. No drama, possuem cenas de PTSD, violência, uso excessivo de drogas e convulsões que podem funcionar como gatilhos ou deixar o telespectador em um estado psíquico fragilizado, além de contar com técnicas fotográficas curvilíneas que podem causar tontura.

Por Jéssica Blaine

 

2 thoughts on “{Resenha} Cherry – Tom Holland, é você?

  1. I enjoyed your analysis of the dynamic between Cherry and Emily, the beauty of their toxic relationship truly does lie in the actor’s undeniable chemistry.

  2. Thanks! I’m glad you enjoyed the reading.
    And yes, the chemistry of the two actors is one of the factors that prevails in this drama. I believe that if two people with little or no chemistry were cast, we would hate the entire film, because in reality their relationship is the center of the whole plot and it is a very problematic relationship, full of ups and downs, so I think that I don’t would let me fall into the story if the protagonists did not have a chemistry that caught the eye. Even in moments of disagreement, they make us believe that there is still something at the bottom of all that obscurity, under the drugs, the PTSD, the war, the confusions that coexist in the two characters, the love is still there. And it is this unique chemistry that creates a certain hope in us.

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